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O CARNAVAL AFRO-ELÉTRICO-EMPRESARIAL E AS POLÍTICAS CULTURAIS 
 

 Paulo Miguez *
 

O “carnaval-negócio” é a marca registrada que, nas últimas duas décadas, tem particularizado a configuração do carnaval da Bahia. Sua formação resulta da conjunção de três inflexões importantes experimentadas pela festa carnavalesca nos últimos sessenta anos.
A primeira, a criação/invenção do trio elétrico, no carnaval de 1950, pelos geniais Dodô e Osmar, fato que marca uma profunda e definitiva transformação do carnaval baiano ao inaugurar uma espécie de "democracia do lúdico" e promover inovações que redefiniram a festa nos seus aspectos estético-musical, gestual, territorial, organizativo e tecnológico.
A segunda, em meados dos anos 1970, a explosão afro-carnavalesca acionada pela juventude negromestiça de Salvador, caracterizada pelo ressurgimento dos afoxés e, novidade absoluta, pela emergência dos blocos afro, organizações com um repertório estético-político de matriz afrobaiana que acabou por transcender o território do carnaval, avançando cidade adentro e alterando radicalmente a cena cultural baiana desde então.
Nos anos 1980, localiza-se a terceira das inflexões. Trata-se do processo de empresarialização dos blocos de trio. Surgidos na metade da década anterior por obra das classes médias da cidade, privatizam com suas cordas o trio elétrico – reintroduzindo a hierarquia social na ocupação do espaço público da festa que havia sido desarticulada pela invenção de Dodô e Osmar nos anos 1950 – e, rapidamente, passam a organizar-se em bases empresariais privilegiando a dimensão de mercado, contribuindo, decisivamente, para a transformação do carnaval baiano em um produto com um ciclo de realização que ultrapassa os limites da festa e da cidade e estimulando as demais organizações carnavalescas a arriscarem-se em aventuras organizacionais semelhantes.
Assim é que, desta tríplice conjunção, vai emergir um carnaval que podemos chamar de “afro-elétrico-empresarial”. Um megaevento, simultaneamente produto e mercado, com uma estrutura e uma lógica organizacional que se torna a cada ano mais complexa, com uma capacidade impressionante de gerar, transformar e realizar seus múltiplos produtos (música, artistas, organizações e o próprio trio elétrico), articulado de formas variadas com a indústria cultural, com o sistema midiático, com a indústria do turismo e do lazer e com a economia de serviços da cidade, e que movimenta, atualmente, algo à volta de meio bilhão de reais.
É evidente que, assim (re)configurado, o carnaval aciona imensos desafios. Quais são e como enfrentá-los não são questões simples de responder. São questões que, inclusive, exigem um esforço inicial: o abandono das falsas perspectivas de análise da cena carnavalesca. Umas, nostalgicamente ancoradas nos “velhos carnavais” e que vendem a idéia de que “antes” a festa era melhor, perfeita mesmo, quase ... angelical. Outras, que acreditam ser possível ao carnaval eliminar ou, pelo menos, sublimar as desigualdades sociais, os preconceitos, etc. Algumas mais, crentes de que o carnaval é apenas um mercado e dedicadas exclusivamente em pensar esquemas ainda mais privatizadores, concentradores, excludentes. Definitivamente, perspectivas desse quilate de nada adiantam para a identificação e o enfrentamento dos desafios do carnaval baiano contemporâneo. Primeiro, porque o carnaval sempre foi uma arena de muitos conflitos, velhos e novos conflitos. Em segundo lugar, porque não cabe a Momo, soberano por escassos dias, resolver problemas que, como no caso das desigualdades sociais e preconceitos de toda ordem, dependem de políticas públicas e não da festa. Por último, muito menos consta que o soberano da galhofa tenha se tornado tão somente um reles mercador de alegrias.
Portanto, armar uma equação que pretenda dar conta dos desafios dos festejos carnavalescos na Bahia na sua forma atual exige, por certo, outro tipo de perspectiva. Seu ponto de partida deve ser a compreensão do carnaval como um fenômeno do campo da cultura. Sim, antes de tudo – muito antes, por exemplo, da sua condição de grande negócio, e para além das idealizações que teimam em romantizá-lo –, o carnaval é, especificamente, uma – junto com Candomblé, a mais vistosa e vigorosa – manifestação do patrimônio intangível da cultura baiana e é assim que deve ser tratado.
Como não é assim que vem sendo tratado, passar a tratá-lo tendo como base esta compreensão é o primeiro, e o mais amplo, dos desafios do carnaval baiano, hoje. Enfrentar tal desafio é tarefa fundamentalmente do Estado, no plano municipal, principalmente, mas também no estadual e até no federal. Primeiro, porque a ele, Estado, cabe o cumprimento das obrigações constitucionais de proteção do patrimônio cultural. Depois, porque deve ser ele o principal responsável pela formulação e implementação de políticas públicas de cultura dedicadas à festa. Políticas que acionem mecanismos de proteção à diversidade de manifestações que caracteriza a história dos festejos carnavalescos; que cuidem da memória da festa; que estimulem estudos e pesquisas sobre seus vários aspectos; que promovam a produção de informações, estatísticas e indicadores; e que atentem, é óbvio, para a dimensão econômica de que se revestem atualmente os festejos, particularmente pelo fato de que, no carnaval baiano, a dimensão econômico-mercantil têm vindo, praticamente, a subordinar a dimensão simbólico-cultural.
Articulados com este primeiro desafio, dois outros compõem, também, a equação. Um, o desafio de estabelecer marcos regulatórios sintonizados com um projeto de distribuição menos desigual da riqueza gerada pela festa. É que, em que pesem o tamanho e a pujança da sua economia, o carnaval baiano ainda não teve a oportunidade de constituir-se, efetivamente, como um espaço onde as várias alternativas de sobrevivência experimentadas por expressivo contingente da população de Salvador possam transformar-se em um projeto de desenvolvimento devidamente sintonizado com o que podemos chamar de vocação pós-industrial da cidade de Salvador.
Com efeito, a repartição da riqueza gerada pela grande festa baiana é absolutamente desigual. Os maiores benefícios financeiros concentram-se, quase que exclusivamente, nas mãos das poucas empresas que atuam nos segmentos dominados pelos grandes capitais responsáveis pelos múltiplos negócios dos grandes blocos e pelo parque hoteleiro. Na outra ponta desta economia, micro e pequenas empresas e um exército de trabalhadores informais disputam alguma renda, num ambiente altamente competitivo e com baixíssimas margens de lucro.
Por outro lado, o Poder Público arrecada pouco em termos de tributos – seja por conta da elevada sonegação, seja, também, pelo grau de informalidade com que muitos dos negócios são realizados – mas é obrigado a arcar com gastos consideráveis em áreas vitais para a realização da festa como, por exemplo, infraestrutura, serviços públicos, saúde e segurança. Ator indispensável para o sucesso do carnaval, cabe, portanto, ao Poder Público, definir uma regulação que impeça as práticas oligopolistas e concentradoras que têm ampliado e aprofundado desigualdades e excluído os atores e setores mais frágeis – as pequenas entidades carnavalescas, a exemplo dos afoxés, as micro e pequenas empresas e um exército de trabalhadores informais – de uma melhor repartição dos benefícios econômicos do carnaval.
O outro, o desafio da governança, absolutamente imperativo, uma vez que o carnaval envolve uma multiplicidade de atores sociais, tanto públicos quanto privados. Fundamental, neste aspecto, é uma radical reorganização do Conselho Municipal do Carnaval, um organismo que não consegue, na sua forma atual, representar a diversidade de interesses presentes na festa e que vem sendo hegemonizado pelos grandes grupos que atuam no mercado da festa.
Os três macro-desafios, aqui indicados, apenas tentam acomodar os principais aspectos que caracterizam o conjunto de problemas que emerge do carnaval baiano na sua configuração contemporânea. O detalhamento e a identificação do repertório de políticas e ações necessários ao seu enfrentamento requer, por óbvio, um amplo e transparente processo democrático de discussão envolvendo os distintos atores carnavalescos, tanto públicos quanto privados.
Todavia, o que deve estar claro é que tal repertório de políticas e ações que no âmbito organizativo, técnico, gerencial ou econômico pretenda apontar para este objetivo deve ter como baliza, inegociável, o fato de ser o carnaval um patrimônio da cultura baiana. Estamos falando, portanto, de políticas públicas de cultura para a festa, algo que, historicamente, não comparece como eixo na relação entre o Estado e o carnaval da Bahia. Fora daí, qualquer intervenção comportará, sempre, os riscos de fragilizar a dimensão simbólica da festa e comprometer seus sentidos, seus significados, seu lugar na vida da cidade.
Ou seja, em se tratando do carnaval – insistimos, um fenômeno acima de tudo simbólico-cultural – é imperativo a construção de soluções que devem ultrapassar o plano da economia da festa. Nessa medida, ao Poder Público, se é importante que avance no sentido do desenvolvimento de metodologias adequadas ao mapeamento rigoroso dos fluxos que dão corpo à economia do carnaval, particularmente para que seja capaz de acionar as medidas regulatórias indispensáveis à definição de limites e regras balizadoras das práticas mercantis que o carnaval comporta, e se é absolutamente indispensável que assuma o papel que lhe cabe na governança da festa – papel do qual, ao longo dos últimos anos, tem aberto mão em favor dos grandes capitais que atuam na economia do carnaval – é ainda mais urgente e fundamental que, partindo do reconhecimento do significado que esta festa tem para a alma da cidade e suas gentes, acione políticas culturais que garantam a prevalência da diversidade de manifestações, do espírito popular e do caráter participativo que fizeram do carnaval baiano uma grande festa.
 
     

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*Professor do Instituto de Humanidades Artes e Ciências da UFBA