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SALVADOR DEVE CONSTRUIR A SUA HISTÓRIA ...

 

                                                  Dom Gregório Paixão*

 

Veracidade - Como começou a jornada religiosa que conduziu o Sr. ao posto de Bispo Auxiliar?

Dom Gregório Paixão - Tudo começou em Aracaju, minha cidade natal. Nasci em 1964 e sou o terceiro de cinco irmãos. Um deles, assim como eu, é monge beneditino, de nome Dom Henrique Paixão. Eu decidi pela vida religiosa muito cedo e já falava sobre o assunto com sete anos de idade. Esse desejo nunca me saiu da cabeça. Estudei esse tempo todo no Colégio Salesiano e, aos 17 anos, fiz vestibular e fui aprovado para os cursos de Direito e Administração na Universidade Federal de Sergipe e na Universidade Tiradentes de Aracaju. Após iniciar os cursos disse a mim mesmo: essa não é a minha vocação. Abandonei tudo em Aracaju e entrei para o Mosteiro de São Bento, em Salvador, em 1983. Quando ingressei, a Igreja Católica vivia um período de profundas transformações. Foi um período de transição e de certa acomodação, após uma verdadeira revolução no pensamento eclesial causada pelas inovações do Concílio Vaticano II. Quando cheguei ao Mosteiro de São Bento, o convento era habitado por monges relativamente idosos. Eu era o mais jovem, mas via no rosto dos monges mais velhos um ideal de futuro, de esperança. Por causa desse exemplo, acreditei que aquele fosse o projeto de Deus para a minha vida. Fiz o noviciado sob as orientações de Dom Paulo Rocha, abade, e de Dom Timóteo Amoroso Anastácio, que renunciara dois anos antes. O Mosteiro me possibilitou, como faz a todos os seus monges, uma formação magnífica. Assim, cursei música na Universidade Católica, estudei piano com Dona Maju Vital e, depois, fui fazer Filosofia e Teologia no Rio de Janeiro. Posteriormente fiz especialização em Antropologia Cultural, com Mestrado e Doutorado em curso pela Universidade Aberta de Amsterdã, onde ensino até hoje como professor convidado. Por causa do meu interesse pelo desenvolvimento cultural dos povos fui chamado para direcionar o Setor Cultura da CNBB nacional e, por quatro anos fiz parte do Conselho de Cultura do Estado da Bahia. Continuo trabalhando para a Faculdade São Bento, que pertence ao Mosteiro, ensinando Língua Grega e Homilética Retórica. Naquele convento fui organista, cantor, arquivista e Diretor da Faculdade e do Colégio São Bento. Depois de 23 anos de vida monástica o Papa Bento XVI me chamou para ser Bispo. Atualmente trabalho na Arquidiocese de Salvador, o que para mim é uma grande alegria.

Veracidade - Qual é o papel que a Igreja Católica desempenha hoje na cidade de Salvador e como o Sr. vê o futuro da cidade?

Dom Gregório Paixão - A Igreja tem muito a contribuir para o futuro de Salvador. Ela está presente no Brasil desde o dia do descobrimento. Não dá para falar da história do Brasil sem falar da Igreja Católica. O mesmo se deu na fundação de nossa cidade, em 1549. A Igreja estava lá, e se mantém fiel a essa cidade até o dia de hoje. É a maior instituição, depois do governo, a trabalhar com os mais pobres e excluídos, e é a que abarca o maior número de cristãos de nossa cidade. Não há ângulo em que a gente não veja a magnitude dessa presença, por meios de suas igrejas, monumentos, nomes de ruas, etc. Até o nome de nossa cidade está ligado à Igreja, pois esta cidade é a Cidade do Salvador, com sua Baía de Todos os Santos. Ou seja, em tudo está a marca católica. Entendemos, assim, que uma das funções da Igreja aqui na Bahia é tentar mostrar, pela sabedoria advinda do cristianismo, que os baianos são, sim, capazes de construir a nova cidade que todos desejamos. Essa cidade que é minha e que é sua, que é de todos nós, cujo futuro está em nossas mãos. Sem paixão não construiremos jamais a cidade que queremos para os nossos filhos e netos. Que sonhamos para nós mesmos. Ela tem história, tem encantos. Mas está profundamente abandonada, esquecida, maltratada. A Igreja, então, é voz autorizada, desde muito, a dizer que precisamos olhar para a cidade com um novo olhar, como a casa de todos, como um sonho de coletividade sonhado por Deus e que, portanto, deve ser sonho e realidade para todos nós. Desse modo, a Igreja não pode ficar calada frente à calamidade social que vê desenhada nos morros de Salvador. Deve lutar ao lado de cada cidadão, para construir o novo, como testemunho de amor ao nosso passado. A Igreja deve mostrar a todos que sem as raízes do passado e as lições aprendidas a gente não conseguirá mudar aquilo que precisa ser substituído e conservar o que pode ser restaurado e repensado, como é o caso das nossas famílias

Veracidade - Qual é o papel da família hoje, neste mundo globalizado, sem raízes, como o Sr. caracterizou?

Dom Gregório Paixão - A melhor forma de se dominar um povo é subtrair suas raízes. As sociedades antigas, que perderam os seus referenciais, foram dominadas, especialmente quando abandonaram as raízes familiares, célula primeira de todo viver comunitário. Todo mito antigo nasce a partir da ideia de família. Lembremo-nos de Adão, Eva e seus filhos. Veja o panteão grego, e mesmo o nagô. Lá estava definida como célula nascente a sociedade constituída por homem-mulher-filhos. E, se olharmos o cristianismo, vemos a mesma coisa. Jesus podia ter descido do Céu numa bola de fogo ou algo que o valha. Mas quis se encarnar no seio de uma família, constituída por José, Maria e Ele próprio. Desse modo, destruir a família significa destruir o alicerce, a base. É arrancar o próprio coração da sociedade. O papel da família, portanto, será construir novos cidadãos para Deus e para o mundo, edificando a Terra, morada de todos nós, sobre o alicerce da fé, do trabalho, da responsabilidade, e assim por diante. 

Veracidade - Mas o perfil da família está mudando, como analisar esta nova situação?

Dom Gregório Paixão - O perfil da família sempre mudou ao longo dos séculos. Não há problema que o perfil mude, o problema é que algumas pessoas estão desejosas de “substituir” família por algo que ainda não se apresentou, simplesmente porque desejam resolver suas frustrações pessoais. Nada impede que você, pela liberdade de expressão constitua um núcleo distinto da família, mas o núcleo familiar, como foi construído pelos nossos antepassados, deve continuar, para que a sociedade não se auto destrua.

Veracidade - E sobre as relações homoafetivas?

Dom Gregório Paixão -  As relações homoafetivas sempre existiram ao longo da humanidade, às vezes mais visível em algumas sociedades, às vezes mascarada em outras. Entretanto, eu não posso dizer que a união de amigos dentro de uma casa seja uma família, tal como compreendem os povos. Se as pessoas do mesmo sexo desejam se unir para criar um núcleo afetivo, este será garantido pelas leis civis, mas dizerem que qualquer união de corpos é uma família, isso não é mesmo, por mais que desejem enfiar essa ideia goela a baixo da sociedade. Infelizmente, nós vivemos numa sociedade onde a minoria deseja legislar sobre a grande massa. E mais, estamos vivendo a ditadura do pensamento único. Se você não pensar “politicamente correto” é execrado por todos. O que vemos é o nascimento de um novo farisaísmo, onde todos aplaudem as “novas ideias”, apenas para serem moderninhos, mas não desejam que o que está sendo apresentado visite sua casa. Não nego, porém, que as pessoas homossexuais têm o direito garantido por lei de viverem suas vidas e que devemos respeitar as opções de cada cidadão. Porém, devem, também eles, respeitar as opções das outras pessoas, pois é pelo respeito mútuo que construiremos uma sociedade justa e fraterna.

Veracidade - Ou seja, o núcleo familiar persiste...

Dom Gregório Paixão - Sim, eu não tenho dúvida, por mais que se queira destruí-lo. Não se pode destruir aquilo que se constituiu fundamento. Por exemplo, existem projetos de lei que propõem acabar com o dia dos pais e o dia das mães. Projeto este já apresentado por políticos oportunistas. Eu duvido que os casais homossexuais que adotaram seus filhos desejem essa radicalidade. Eu nunca soube, por exemplo, que um filho de mãe solteira tenha ficado traumatizado porque no colégio se celebra o dia dos pais. Cabe à mãe dar a explicação necessária para o seu filho, especificando o caso particular de sua família. Querer criar padrões universais e obrigar a que todos o sigam é gerar uma ditadura das minorias, o que nunca dá certo a nível social, pelo contrário, vai gerar ainda mais preconceito.

Veracidade - Como foi a convivência no Mosteiro de São Bento no período turbulento da ditadura militar? Qual o papel de Dom Timóteo Amoroso Anastácio e do Mosteiro na luta pelos direitos humanos e pela redemocratização?

Dom Gregório Paixão - Existe uma frase no capítulo IV da Regra de São Bento, escrita há mais de 1500 anos, que diz que os monges devem ”honrar todos os homens”, então, aquele que chega ao Mosteiro, seja negro, seja branco, seja lá o que for, vai ser sempre acolhido por causa da sua condição humana, e não por causa da sua condição social ou raça, porque só existe uma raça que é a raça humana. Ele vai ser acolhido como se fosse o próprio Cristo. Por isso, quem vai ao Mosteiro será visto sempre como pessoa, seja um cristão, um comunista, um protestante, um espírita, um candomblecista, e assim por diante. Dom Timóteo e os monges do Mosteiro foram formados dentro desse espírito universal, embora totalmente imbuídos da doutrina cristã católica. No Mosteiro aprendemos o seguinte: se a direita perseguir a esquerda, nós acolheremos a esquerda. Se a esquerda perseguir a direita, nós vamos acolher a direita. Nós desejamos acolher sempre o oprimido, o que está sofrendo, o que está à margem da sociedade. As atitudes de Dom Timóteo são as atitudes que se espera de todos os monges beneditinos ao redor do mundo. Desse modo, Dom Timóteo colocou em prática o que aprendeu ao longo de toda a sua vida, e não teve medo de abrir as portas do Mosteiro para acolher todos os que estavam sendo perseguidos no período da ditadura militar. Ele, e os monges da Bahia, não podiam ficar calados frente ao grito de homens e mulheres que estavam sendo massacrados. Se ficassem calados não seriam cristãos. Veja que Dom Timóteo acolheu pessoas que não tinham fé, que não acreditavam no cristianismo, que eram até contra a Igreja Católica, mas ele não teve medo de enxergar naquele que pensava diferente um irmão que necessitava do carinho cristão e monástico. No fundo, ele tornou visível o coração de Cristo para aquelas pessoas, como se espera de um discípulo do Senhor. Na verdade, Dom Timóteo foi um monge profundamente iluminado. Ele amava a Deus, a vida, a natureza e as pessoas. Viveu espalhando o bem, e morreu com a tranqüilidade dos justos, com a serenidade dos santos.
 
Veracidade -
Como o Sr. vê o processo de redemocratização do Brasil?

Dom Gregório Paixão - Não construímos a democracia por decreto. Desse modo o processo de redemocratização do Brasil está se solidificando paulatinamente. Graças a Deus o Brasil melhorou muito nos últimos anos, por meio de políticas públicas bem razoáveis e de um novo pensamento republicano. Queremos um Brasil que seja de todos, e não de uma minoria abastada. Queremos um Brasil de cidadãos que constroem a sua própria história, por meio da dignidade do trabalho, dos sonhos que projeta para si e para a sua família. Por isso mesmo, democracia e justiça social andam juntas, de mãos dadas. Não podemos, entretanto, deixar de dizer que estamos bem longe do ideal, pois a cada instante vemos fumaça de posições ditatoriais por todos os lados. Não nos esqueçamos que, olhando para o passado nós sabemos que os grupos de esquerda não queriam a redemocratização, eles queriam o poder. E, na mesma balança, os grupos de direita não queriam perder o poder, apresentando garras ferozes para mantê-lo a todo custo. Agora, quarenta anos depois, vemos que muitos dos ideais positivos do passado foram esquecidos pelos grupos que lutaram por eles. Hoje, para se manter no poder, as pessoas são capazes de se unir com seus maiores inimigos, abandonando os ideais de base pelos interesses pessoais. Isso é um decréscimo para a nossa democracia, o que mostra que ela permanece profundamente frágil no Brasil. Lembro que democracia não é apenas o direito que nos é dado de eleger os nossos representantes. Enquanto tivermos um só cidadão que passe fome em nosso país, significa que ainda não somos uma nação democrática.

Veracidade - A cidade de Salvador bucólica, aprazível, tranquila, deu lugar a uma metrópole agitada, violenta, estressada. Como enfrentar essa realidade sem perder a perspectiva da cidadania, dos excluídos, e até mesmo da fé religiosa?

Dom Gregório Paixão - Salvador é uma cidade maravilhosa e tem um povo maravilhoso. Mas o legado de seus governantes... Acho que vamos precisar de uns 100 anos para reverter o mal que estamos fazendo a nossa cidade há décadas. Salvador está se tornando uma grande favela, que por aqui chamamos de invasão. Ela cresceu desordenada pela incompetência de seus governantes. Quando aqui cheguei, há 30 anos atrás, ouvia-se falar de guetos, como o do Curuzu, da Liberdade, da Suburbana. Hoje nossos guetos são o Alphaville, Rio Vermelho, Caminho das Árvores, Horto Florestal, etc. No resto da cidade, vemos uma população abandonada, vivendo em ilhas de miséria. Nosso olhar se acostuma com essa paisagem desordenada e acaba achando que isso é o normal. O que não é! O resultado desse amontoado de pessoas é a falta de infraestrutura que atenda às demandas. Por causa disso, sofremos hoje com a violência em todos os níveis e o pior é que isso tende a aumentar cada vez mais. Eu vivo na periferia, evangelizando e celebrando nas comunidades e sei o que é que o povo passa. Se nosso povo não fosse tão passivo teríamos presenciado uma revolta geral. Mas se colocou na cabeça do soteropolitano que tudo por aqui é lindo, é maravilhoso. Veja o caso do Metrô. São 12 anos de descaso. E a gente aceita isso passivamente. Veja a greve dos professores. Foram mais de 100 dias! E a gente se cala. Falta-nos o espírito da década de 70, quando tínhamos coragem de enfrentar tudo e todos por um Brasil mais justo.

Veracidade - Voltemos ao território do Sagrado, da religião. Estamos atualmente num mundo globalizado, plugado, conectado. Qual a importância, hoje, da fé e da religiosidade nesse mundo?

Dom Gregório Paixão - Acho maravilhoso saber que vivemos num mundo plugado, que nos dá a possibilidade de conhecer o outro lado do mundo, que nós não conhecíamos. Entretanto, esse mundo conectado tornou-se um mundo visivelmente individualista. Os novos ideais da contemporaneidade tornaram a sociedade sedenta de espaço. A Terra ficou pequena para nós e a Lua já não nos basta; queremos ir a Marte. Se possível, ao Sol. O desejo de invadir o orbe terrestre gerou o fenômeno da globalização. A sede não é só de espaço, mas de ocupação de espaço, expansão de novas ideias, pelo simples desejo de gerar em toda a sociedade o sentido de pertença universalizante. A religião é filha do seu tempo e está aprendendo a viver nesse mundo em transformação. A Igreja sempre soube encontrar seu espaço em meio às novas tecnologias. Não devemos, portanto, ter medo das novidades que vemos à nossa frente, pois os avanços dos últimos 200 anos não nos destruíram, mas não conseguiram suprir a nossa sede de eternidade. Quantas coisas foram ditas quando surgiu o rádio, a televisão, o computador. O convívio foi um pouco fatal no início, mas depois se tornou vital para a própria vida humana. O mesmo se diz sobre a religião. Nada a substituirá. Pelo contrário, quanto mais o homem estiver plugado, mais ele sentirá falta de algo que o tire do trivial, do puramente humano. Então seus olhos se voltam para o alto, para onde nenhuma máquina pode levá-lo. A presença da religião leva-nos a dizer: olhem, tudo isso aí é maravilhoso, facilita nossa comunicação e nosso conhecimento, mas tudo isso aí tem que ser colocado para que a gente viva melhor em comunidade, e não para que nos tornemos ilhas que não se tocam. A tecnologia pode nos auxiliar em assuntos básicos, é verdade, mas não consegue responder às nossas perguntas mais íntimas. É nesse ponto que devemos entender que imanência e transcendência não devem se digladiar, mas, à medida que entendemos o mundo on line onde vivemos, mais facilmente seremos capazes de entender um outro mundo, do qual temos sede e que começamos a construir a partir de agora, unindo a existência divina à humana, pois só Deus é humano, no sentido mais profundo da palavra.

Veracidade - Então essa é a forma que a religiosidade pode utilizar para ajudar a convivência dos homens, hoje, ligando o divino à nossa existência, profundamente modificada?

Dom Gregório Paixão - A religião continua a nos dizer que existe uma dimensão da vida humana que precisa ser desenvolvida, muito além do que conseguimos desenvolver pela tecnologia. Além desse mundo que nos encanta, e que vai nos encantar muito mais, existe um outro que ultrapassa todo conhecimento material. Existe um Ser, que está muito além de todo ser, pois existe em nós uma dimensão mística que não podemos esconder. Desse modo, a religião faz com que o homem volte à sua essência, pois saímos de Deus e para Ele voltaremos. E o essencial no homem, sob o enfoque religioso, é extremamente simples, pois visa despertar essa essência divina que existe em nós. Essa existência que grita ao nosso redor, e que nos faz reconhecer o que somos e o que seremos. A religião nos faz ver que corremos demais e perdemos a nossa alma ao longo do caminho. Ela nos mostra que precisamos parar para resgatar o que nos dá força para viver e para sonhar, pois, às vezes, não mais nos AGU entamos. Diante de tantas perguntas que fazemos, a religião deseja nos dá algumas respostas, religando o nosso mundo passageiro a um outro, divino e eterno. 

Veracidade - E o que é essencial, hoje?

Dom Gregório Paixão - O essencial, diria o Saint Exupéry, é invisível aos olhos. No fundo, o que nós precisamos é reconhecer o que nós somos, a fragilidade da nossa vida e alegria das pequenas coisas, como amar, deixar-se amar, sorrir; em suma, ser feliz. Esse é o grande projeto de Deus em nossa vida. O Senhor deseja que sejamos portadores de uma alegria que ninguém poderá nos roubar. E essa alegria não pode ser alienada, mas profundamente enraizada nas realidades que vivemos. Não podemos negar o que pode dar resposta à nossa existência e aos nossos sonhos. Hoje, aos 47 anos, eu descobri que não adianta buscar resposta à direita ou à esquerda, pois a verdade já está dentro de mim. E lá, onde ela se encontra, é a morada de Deus.
 
Veracidade -
E a relação entre o Homem e a Natureza, nesse mundo globalizado?

Dom Gregório Paixão - A natureza hoje sofre dores de parto. Deseja favorecer a existência humana, dando-nos muito além do que precisamos, numa atitude de prodigalidade. Não podemos nos esquecer que ela é viva e patrocinadora da vida. Um desequilíbrio ambiental de proporção megalômana pode nos destruir a todos, por isso, só nos resta ser parceiros da natureza, que é muito maior e mais poderosa do que o ser humano. Não podemos nos dar o direito de destruir o que foi criado com tanto carinho por Deus, numa paciência de bilhões de anos, por meio do processo de evolução. Mas veja, quando buscamos destruir a natureza é porque pouco nos importa a vida daqueles que dela dependem. O egoísmo destruidor não apenas mata a natureza e o homem que depende da natureza, mas ele é suicida. Matando-a, eu me mato. Quando eu não encontro mais sentido na conservação do ser humano, então eu destruo, egoisticamente, o que mantém o homem vivo. Daí o processo destruidor que vemos assolar a natureza que nos circunda. O individualismo galopante e os interesses de grupos profundamente egoístas, ligados a interesses escusos, são os grandes culpados do que vemos acontecer ao nosso lado. Precisamos construir uma memória do futuro. Minha vida está ligada à vida dos meus futuros netos, bisnetos, tataranetos. Podemos estar hoje preparando para eles um inferno de terrores. No fundo, o enriquecimento ilícito que se faz pela exploração da natureza cria um paraíso, para alguns, onde o outro não existe. Na verdade, odiar é criar um paraíso onde o outro não existe. Deus, ao criar o universo, o pensou como paraíso dado a todos nós. Dele desfrutamos apenas de uma partícula, que é a Terra, mas da qual não estamos sabendo cuidar.

Veracidade - Estamos acostumados a vincular a Igreja, a imagem do Cristo, a Religião, a coisas boas. Como entender que pessoas cometam atentados brutais à própria existência humana em nome de Deus?

Dom Gregório Paixão - Um leitor que abra o Novo Testamento bíblico pela primeira vez notará que não há ali, em nenhum versículo, uma palavra que leve à guerra, à violência ou à luta de classes. Qualquer coisa que lembre divisão, ódio, pode ser tudo, menos religião, menos obra de Deus. Os vândalos, radicais, terroristas, fundamentalistas desejam defender ideias que são suas, e não ideias divinas. Qualquer religião que use a força bruta, que use a violência como forma de mensagem divina torna-se uma não-religião, uma grande mentira, uma farsa. Jesus, por exemplo, nunca falou uma palavra que incitasse à violência, pelo contrário, Ele sofreu violência. Ele morreu de forma violenta, mesmo tendo pregado a paz e o amor. A Religião na sociedade serve para lembrar às pessoas que Deus é amor, é misericórdia, é paz. O cristianismo, por exemplo, moldou uma nova sociedade, que saia do vandalismo para uma existência nova, moldada no amor e na cooperação entre os povos. Sem o pensamento cristão nós estaríamos vivendo num mundo muito mais bárbaro do que o que vivemos hoje. Portanto, quem usa da religião para destruir o ser humano desenvolveu no seu ser uma semente satânica de destruição e não uma graça pacificadora que vem de Deus. 

Veracidade - Recentemente, o Ministro Chefe da Secretaria Geral da Presidência da República, Gilberto Carvalho, falou sobre a preocupação da Igreja Católica com a perda de influência do catolicismo para algumas igrejas neopentecostais, e se referiu a isso como um “combate ideológico”. Existe, de fato, esse combate?

Dom Gregório Paixão - Eu penso que não existe um combate religioso, mas um embate religioso. Vivemos uma profunda mudança na sociedade brasileira, inclusive em matéria religiosa. Se há “perda” dos católicos para as novas denominações, há, a olhos vistos, uma profunda crise no protestantismo. Isso se dá pela multiplicação de igrejas, fruto de rixas internas. Os evangélicos crescem em número, é certo, mas cada vez mais divididos e numa guerra sem fim por espaço e visibilidade. Essa realidade deve nos entristecer e questionar, pois, enquanto há disputas dentro do cristianismo, cresce o número dos indiferentes ao Evangelho. Por outro lado, a Igreja Católica vê diante dos olhos aquilo que já sabia há séculos: que há uma infinidade de católicos de censo, de boca, e que pouco ou nada conhecem da sua fé. No meio desse mundo em ebulição, as ideologias aparecem bem mais fortes do que o ideal apresentado por Jesus, que desejava ver os cristãos unidos pela transformação do mundo. Vejo, porém, como desagregador o proselitismo reducionista que surgiu no seio da sociedade. A Constituição brasileira deixa a cada cidadão o direito de escolha. Mas há os que desejam impor a sua idéia, por meio da ditadura do pensamento único. A Igreja Católica respeita todas as religiões, mas deseja ser respeitada do mesmo jeito. O que estamos vendo é um profundo desrespeito religioso, que em nada pode ser comparado ao pensamento deixado por Jesus, que nunca impôs coisa alguma, mas, convidou a todos a que participassem das alegrias do seu Reino.
 
Veracidade -
O professor Milton Santos Filho, ex-secretário da Fazenda de Salvador disse, certa feita, em palestra na Escola de Administração da UFBA, que o único movimento político, em escala global, que cresce a olhos vistos, é o fundamentalismo islâmico...

Dom Gregório Paixão - Concordo com o Prof. Milton. Eu viajo anualmente à Europa para dar aulas na Universidade Aberta de Amsterdã. Assusta-me o número de islâmicos que vejo nas ruas, visível pelas mulheres que usam o véu sagrado. O islamismo é profundamente pacífico quando é minoria e extremamente violento quando é maioria. Mas na verdade, o fundamentalismo está presente em todas as religiões, inclusive no cristianismo. E o pior é que os fundamentalistas não desejam falar apenas em nome de Deus, eles se consideram deuses e estão dispostos a qualquer coisa para que suas ideias – geralmente retrógradas – se implantem na sociedade. Devemos fazer de tudo para libertar a religião e a sociedade desse tipo de gente, que é sempre sectária e perigosa. Quando você se torna dono de uma única verdade, você acha que pode qualquer coisa, inclusive matar em “nome de Deus”. A Europa imaginava que deixando os seus jovens sem formação cristã os libertaria da influência da Igreja. Agora vê muitos de seus jovens abraçando o islamismo e negando um passado histórico que construiu o velho continente. São os revezes da história, são os aprendizados vindos pelo sofrimento. Ao mesmo tempo a Europa sofre hoje do que plantou no passado, pois não podemos esquecer que ela explorou colônias por todo o mundo e agora vê os “filhos” dos colonos invadirem os espaços que se mantêm preservados pela distância. É a ironia das escolhas e a colheita do que plantamos. O Papa fala o tempo todo: se nós não retornarmos às nossas bases, às nossas origens, seremos totalmente destruídos. Por isso, vemos uma Europa com corpo de ouro, mas com os pés de barro. E quanto mais a Europa se mostrar frágil, mais os radicais e fundamentalistas encontrarão espaço. Não serão, então, os distantes que combaterão o país, mas os próprios filhos que se revoltarão contra os seus pais. Acho que essa é uma preocupação dos sociólogos e daqueles que estudaram a geografia humana, como é o caso do Professor Milton Santos.
 
Veracidade -
Temos um conflito “religioso” na Irlanda do Norte onde, na verdade, os católicos são majoritariamente pobres, e os protestantes ricos...

Dom. Gregório Paixão - Esse conflito religioso é causado muito mais por um grupinho de radicais do que por toda a população. Os protestantes da Irlanda desejam subjugar os católicos pobres. Na verdade nunca imaginaram ver os católicos em suas igrejas, convertidos. O que desejam é a morte de uma população que ousa pensar e rezar diferente. Como isso é possível? Creio que Deus fica no céu admirado diante de tanta loucura, de tanta barbárie. No fundo, as brigas religiosas servem apenas para mascarar os conflitos sociais, que são intensos em todas as sociedades. Os poderosos apenas toleram os pobres e vão lutar para que eles permaneçam na condição de oprimidos. Sentindo-se ameaçados pelas massas, buscam todos os artifícios para calar o povo. Resultado, aproveitam-se da religião para mascarar seus reais interesses. Deus é o que menos conta, e é em Seu Nome que os massacres acontecem. Só que Deus não tem nada a ver com essa tendência dos homens de oprimir e massacrar o seu próximo.

Veracidade - Voltando a Salvador, essa cidade negra, a mais negra do Brasil, como é que o Sr. vê a presença da religião afro na Bahia, a mistura entre a cultura negra e a cultura cristã?

Dom Gregório Paixão - Salvador é uma cidade maravilhosa. Eu vim para cá aos 17 anos, por causa do Mosteiro de São Bento, mas nunca pude imaginar que ia encontrar um povo tão hospitaleiro e amigo. O baiano não apenas acolhe bem, ele oferece a sua terra para todo aquele que pisa no solo de sua cidade. Oferece, ainda, suas tradições, sua culinária. Isso me parece ser característica de todo o baiano de Salvador e do Recôncavo Baiano. Entretanto, nem todos os baianos seguem as tradições ligadas às religiões afrobrasileiras. Quando se fala de Salvador, os de fora imaginam que todos os afrodescendentes estão ligados ao candomblé. Não é verdade. E mais, a religião afro está cada vez mais sendo confundida com folclore. Desse modo, aproveitando o patrimônio musical religioso do candomblé, se explora comercialmente sua música, com letras, cuja atitude me parece reprovadas para mães de santo. De qualquer forma, a religião dos que pertencem ao candomblé deve ser respeitada por todos. As pessoas são livres para escolher. A convivência entre cristãos, candomblecistas, islâmicos e ateus deve ser sempre pacífica e respeitosa. Não concordo, porém, com o sincretismo religioso. Ele é reducionista e coloca o candomblecista numa atitude de subserviência ao homem branco. No início, os negros vindos da África precisavam mentir, pelo seguimento cristão, para fazer sobreviver sua religião, que era proibida. Agora a Constituição brasileira lhes dá a condição de abraçarem livremente o que pensam. Por isso, ao misturar candomblé com cristianismo supõem que sua religião não é capaz de lhes dar o que buscam. O mesmo se diz dos cristãos que buscam o candomblé. Veja só, a teologia e a antropologia do cristianismo é totalmente diferente da do candomblé. Elas não se completam. Por isso penso que as pessoas de candomblé devem viver livremente sua escolha, assim como aqueles que escolheram outras religiões. Aliás, boa parte das yalorixás de Salvador são contra o sincretismo, especialmente aquelas que tem uma formação acadêmica sólida. Elas sabem que o candomblé tende a ser cada vez mais respeitado, porém corre o risco de ser um folclore. Como tenho muito contato com estudiosos e turistas, boa parte vêem os orixás como se fossem Saci Pererê ou a Cuca, não entendendo que se trata de uma religião com sacerdotisas e seguidores fiéis. De qualquer modo, nós católicos, continuaremos pregando os valores cristãos e a doutrina deixada por Jesus para a sua Igreja, que visivelmente se dá pela Igreja Católica. Aqui estamos desde as origens, aqui viveremos a nossa fé, aqui respeitaremos as diferenças. Daqui caminharemos para Deus, construindo essa cidade que é amada por todos nós e que há de ser o que desejamos, pois é do Salvador.


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*Bispo Auxiliar da Arquidiocese de Salvador

 

 
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente - SEDHAM
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