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Não Acredito em Receitas Urbanas Genéricas
Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa, um dos principais símbolos do urbanismo brasileiro, Maria Elisa Costa se tornou referência não apenas como urbanista, mas numa “estrada” – conforme costuma definir – que inclui também a produção editorial, arquitetura, paisagismo, cenografia, cinema, design gráfico e patrimônio histórico. A sua ligação com a Bahia, particularmente com Salvador, começa nos anos 70, com o projeto de urbanização da área que é hoje o bairro de Patamares, na Orla. Desde então, além de participar de outros projetos ligados ao desenvolvimento urbano da Capital, tem estado sempre atenta às transformações que ocorrem na cidade. Nessa entrevista exclusiva a Veracidade ela fala sobre o processo urbano nas grandes metrópoles, avalia os principais desafios de Salvador e se mostra otimista em relação ao futuro do país, constatando que o Brasil, enfim, começa a resolver as suas desigualdades sociais. ela fala sobre o processo urbano nas grandes metrópoles, avalia os principais desafios de Salvador.

VeraCidade - Ao longo da sua carreira a Sra. trouxe contribuições importantes para o processo urbano de Salvador. Seria possível descrever essas intervenções?

Maria Elisa Costa  - Antes de responder é preciso deixar claro que, mesmo sendo arquiteta e exercendo a profissão, não tenho propriamente uma carreira. Já trabalhei em vários setores diferentes. O que eu tenho é estrada. Quanto às minhas intervenções em Salvador, ocorreram nos anos 70 e recentemente, em 2010. No início da década de 70 foram só dois projetos, em parceria com Eduardo Sobral. O primeiro foi o bairro residencial para Edio Gantois e Joaci Góes (construtores), apenas parcialmente implantado. Sobrou o nome Patamares, inventado por Eduardo. O segundo foi o sistema viário do Centro Administrativo da Bahia, que incluiu o projeto que fiz para o viaduto de acesso, que hoje, para a minha alegria é denominado Leonel Brizola. Nessa época acompanhei também as propostas de Lúcio Costa relativas à expansão urbana de Salvador, com uma série de recomendações e diretrizes para a construção nas cumeadas e primorosa proposta para os Alagados, infelizmente não levada a sério. Já em 2010, fui procurada pela TTC (Engenharia de Tráfego e Transporte) para participar de estudos relativos a intervenções no sistema viário da cidade, tendo em vista criar alternativas de escoamento do trânsito no sentido leste-oeste, para desafogar a sobrecarga crescente do tráfego na Avenida Luiz Viana (Avenida Paralela), levando em conta, inclusive, a expansão urbana que já se anunciava para essa área. Foram consideradas duas alternativas complementares, uma ao sul e outra ao norte. Do lado sul (entre a Av. Paralela e a Av. Octávio Mangabeira), procurou-se alinhavar trechos de estradas existentes e proteger a integridade do Parque de Pituaçu, o que foi feito através de pontes suspensas. Do lado norte, na medida do possível, foi utilizado a faixa de domínio da linha de alta tensão. Durante o intervalo entre esses dois momentos, acompanhei de perto o que acontecia em Salvador e as interseções entre Salvador e Rio, como a RENURB (Companhia de Renovação Urbana de Salvador) e a FAEC (Fábrica de Equipamentos Comunitários), implantadas em Salvador e, no Rio, a Fábrica de Escolas, que semeou escolinhas e casas da criança nos morros cariocas, complementando o programa dos CIEPS (Centros Integrados de Educação Pública). Além disso, trabalhei na Bahia em outras atividades: Museu Aberto do Descobrimento em Porto Seguro, com Roberto Pinho; cenografia do filme O Mágico e o Delegado, de Fernando Coni Campos; estudos para cenografia do filme de Joaquim Pedro de Andrade, Casa Grande, Senzala & Cia, não realizado.

VeraCidade
 -  O século XXI, obviamente, apresenta especificidades em relação ao planejamento urbano das grandes cidades. Em sua opinião quais seriam, dentre eles, os desafios principais?

Maria Elisa Costa 
- Antes de mais nada agir com bom senso e identificar com clareza e sem ideias pré-fabricadas quais são os problemas a serem resolvidos em cada caso, condição sem a qual as respostas adequadas não aparecem. Lembrando sempre que, nos tempos que correm, para que um instrumento de planejamento seja eficaz, precisa ser ágil e lançar mão das possibilidades que a tecnologia oferece para se manter informado em tempo útil, sobre todas as variáveis que interagem no espaço urbano e que estão sempre em movimento, se alterando num ritmo cada vez mais acelerado. Daí a necessidade de um planejamento capaz de se atualizar continuamente e sem esquecer que as distâncias se medem mais em tempo necessário para vencê-las do que em quilômetros.

VeraCidade
 -  Cidades como Salvador parecem ter ficado para trás em relação ao seu planejamento urbano, ou por não terem efetivamente projetos nesse sentido, ou por falta de recursos para colocar em prática políticas e ações planejadas. O certo é que precisam tomar medidas urgentes para recuperar esse tempo perdido. Então, por onde começar?

Maria Elisa Costa 
- Ao que me lembro, nos anos 80 Salvador teve sim um excelente projeto urbano, inclusive para resolver a questão do transporte público, projeto que foi abandonado, não sei por que. Aliás, junto com o abandono desse projeto, começaram a ser desfeitas muitas das intervenções urbanas que Lelé (o arquiteto João Filgueiras Lima) havia projetado, a começar pela Praça da Inglaterra, na Cidade Baixa. Quando vi a reforma, transformando a praça simples e acolhedora, numa coisa pretensiosa e tola, confesso que quase chorei.

VeraCidade
 -  Na década de 80, a que a Sra. se referiu a pouco, Curitiba surgiu como ícone do planejamento urbano. País afora, cidades correram na direção das concepções oferecidas por Jayme Lerner e sua equipe, inclusive Salvador. A Sra acredita que essas concepções continuam valendo, 30 anos depois?

Maria Elisa Costa
- As soluções de Lerner para Curitiba funcionaram lá porque ele olhou para Curitiba com olhar curitibano. Não acredito muito em receitas urbanas genéricas. Cada cidade tem sua especificidade, apesar da presença constante de problemas comuns.

VeraCidade
 -  Além dos desafios comuns às grandes metrópoles (mobilidade, estrangulamento dos serviços públicos, moradia, etc), Salvador tem na sua topografia irregular um complicador para o seu planejamento urbano. Existe alguma metrópole em que Salvador poderia seguir, digamos, não como modelo exato, mas ao menos como referencial de planejamento urbano, na busca das soluções para os seus problemas?

Maria Elisa Costa
- Continuo achando que se trata de olhar para si própria, em vez de procurar modelos por aí. A primeira lição foi dada pelos portugueses, que implantaram a cidade nas cumeadas, como sempre faziam, sensatos que eram – vide Ouro Preto. A segunda foi a descoberta dos vales para as grandes avenidas. Depois, como em geral acontece nas nossas cidades, o mercado avançou o sinal e a legislação urbana apenas regularizou situações de fato. Sobre planejamento, o que a mim parece mais importante é ter uma atitude movida à realidade diante dos problemas urbanos, que busque soluções definitivas, mais do que velhos discursos teóricos.

VeraCidade
 -  Em Salvador onde em 2004, 52.000 pessoas viviam em 433 áreas de risco, sendo 95 consideradas de alto risco, ameaçadas por eventos como os ocorridos na região serrana do Rio, a principal discussão em termos de planejamento urbano tem sido a mobilidade. É claro que as duas questões, mesmo que indiretamente, se relacionam, mas não há aí uma inversão de prioridades. Ou seja: não se deveria priorizar a discussão em relação à ocupação desordenada da cidade?

Maria Elisa Costa
- É bom lembrar que a intensidade e o vulto do que aconteceu na Região Serrana do Rio tem, antes de mais nada, uma razão específica, que é a conformação geológica da Serra do Mar, de Santa Catarina ao Espírito Santo: camadas finas de solo sobre granito, com grande declividade. Mesmo não havendo ocupações indevidas, se a terra encharca descola da pedra e desce com tudo o que estiver em cima, enchendo a calha dos rios, que transbordam para dar passagem à água e carreiam o que estiver nas margens. E para resolver as duas questões, que indiretamente se relacionam, Salvador tem nada menos do que a faca e o queijo na mão. Refiro-me à proposta que Lelé, arquiteto carioca que a Bahia herdou, mas não dá conta do valor dessa herança. Sugiro que se informem com o próprio Lelé sobre sua proposta residencial para as encostas, o que eu chamo de “favelinha high-tech”. É um projeto absolutamente inovador, que soluciona o problema de ponta a ponta.

VeraCidade -  E em relação a essa questão há dois problemas centrais: o custo para remover essas população para áreas urbanizadas e, pelo menos no caso de Salvador, a indisponibilidade de áreas pra fazer essas remoções. A Sra acredita que o planejamento urbano aliado à arquitetura moderna, como são as ações do João Filgueiras, podem fazer frente a essas demandas?

Maria Elisa Costa
- Como até hoje o nosso país padece da síndrome de não saber dar valor aos seus valores, ainda não se deu conta de que – agora inclusive com seu Instituto Habitat – Lelé realiza a primeira experiência da industrialização da construção, no mundo. Não se trata de pré-fabricação, mas de indústrias, ou seja, a construção é “fabricada”, numa fábrica, como se fosse um carro e a montagem feita no endereço devido. Todos os tribunais de contas (federais), Brasil a fora, foram fabricados assim. O uso da tecnologia desenvolvida por Lelé ao longo de sua vida profissional, somado ao profundo conhecimento que ele tem de Salvador, dá à cidade a oportunidade única de revelar ao Brasil, na prática, ao vivo e em prazo curto, a solução para o problema da moradia popular nas encostas, para tanto, o necessário é que o poder público – a meu ver, nas três esferas – assuma esta opção de forma radical e definitiva, se libertando das firulas burocráticas e deixando claro para a iniciativa privada que, neste caso, as coisas serão diferentes: o país contará com a contribuição das grandes empreiteiras para muitas obras de vulto – estradas, saneamento, aeroportos, estádios, mas, no caso em questão, como se trata de evidente notório saber, o trabalho será conduzido de outra forma, a prioridade é resolver o problema da melhor maneira, com tecnologia própria, baixo custo e a melhor qualidade, sem que a perspectiva de lucro, natural em obras empreitadas da forma tradicional, interfira.

VeraCidade
 -  Outra questão relacionada às especificidades de Salvador se refere à necessidade de preservação do seu Centro Histórico. Na década de 80 houve uma intervenção no Pelourinho que trouxe grande repercussão, mas que acabou não se mantendo. Um modelo que parece esgotado. A Sra tem uma estreita ligação com o patrimônio arquitetônico histórico, inclusive presidiu o IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). Existe algum modelo para uma revitalização sustentada do Centro Histórico de Salvador?

Maria Elisa Costa
- Só foi possível resgatar o Centro Histórico de Salvador porque o IPHAN nos anos 40, pilotado por Rodrigo Mello Franco de Andrade, tomou a iniciativa, pioneira na época, de tombar o conjunto urbano. De outra forma teriam sobrado apenas algumas construções isoladas e se teria perdido para sempre a presença da escala da cidade colonial. A corajosa intervenção feita na década de 80, no Pelourinho então degradado, cuidou do resgate físico das construções, ancorando a sobrevivência da intervenção no aspecto turístico-cenográfico. Hoje se percebe que a “âncora” escolhida não era suficiente. Trata-se agora de pensar em outros termos, e buscar quais são as atividades normais a serem estimuladas no Centro Histórico. Porque, por exemplo, não concentrar ali, entre outras coisas, os ofícios ligados a restauração – de tudo, de prédios, de móveis – de forma que quem precisasse de um marceneiro, ou ferreiro, ou estofador,  pensasse no Pelourinho. Para descobrir os tipos de atividades a serem incentivadas, porque não conversar com quem mora lá, procurar o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas) para sugestões, pensar em cooperativas. Com empenho, seguramente se descobrirá qual o melhor caminho.

VeraCidade
 -  Voltando à Curitiba de Lerner, o projeto de mobilidade urbana com os ônibus articulados foi na época revolucionário. Hoje, Curitiba quer metrô. Isso seria um sinal que esse modelo (ônibus articulado), já não responde a contento a questão urbana das grandes cidades?

Maria Elisa Costa
- Repito que, no meu modo de ver, a solução de Lerner funcionou em Curitiba, mas pode servir ou não para outras cidades, pode estar ou não ultrapassada, conforme o caso. E volto a mencionar o projeto dos anos 80 para transporte de massa em Salvador, cuja implantação começou com a incrível Estação da Lapa – tão grande e que, misteriosamente, não é visível de lugar nenhum – que articula a cidade alta com as avenidas de vale. Lembro que eram previstos sistemas de transporte sobre trilho para ambas, na escala devida para cada caso, ou seja, Salvador foi a primeira cidade brasileira a propor, há mais de 20 anos, o uso do VLT, hoje tão na moda.

VeraCidade
 -  Na Salvador de hoje, a decisão da Justiça em derrubar todas as barracas da Orla trouxe a ocupação dessa área para o centro dos debates relacionados com o planejamento urbano da cidade. A ordem judicial foi rigorosamente cumprida. Salvador não tem hoje as barracas de bebidas e comidas nas suas praias. E, como sempre ocorre por aqui, a cidade está dividida. O que a Sra recomendaria em relação a essa questão?

Maria Elisa Costa
- Ainda não estive em Salvador sem as barracas na Orla. Provavelmente, os ambulantes já estão matando a sede e a fome dos banhistas. No mais, evidentemente, do ponto de vista arquitetônico existem alternativas leves e elegantes para a eventualidade de voltarem a existir na Orla barracas de bebidas e comidas.

VeraCidade
 -  O arquiteto João Filgueiras Lima trouxe efetivamente importantes contribuições, projetando equipamentos que revolucionaram urbanisticamente Salvador, influenciando uma linha de arquitetos que trouxeram cores e modernidade a paisagem da cidade. Uma das suas intervenções, a atual sede da Prefeitura, o Palácio Tomé de Souza, na histórica Praça Municipal, é polêmica até hoje. Que avaliação a Senhora faz a respeito da modernidade arquitetônica de Lelé como legado para uma cidade histórica como Salvador?

Maria Elisa Costa
- Uma das coisas que mais me impressionou no período em que ele atuou na cidade, foi
o inesperado contraste com o Rio de Janeiro – na época a Prefeitura carioca decretou falência.  Nosso belo Aterro do Flamengo estava um matagal e Salvador, um brinco. Tudo, as praças, os abrigos de ônibus e outros equipamentos urbanos, sanitários públicos, tudo impecavelmente limpo. E sobre o prédio da Prefeitura, no endereço certo – problema de difícil solução – é de um incrível acerto em termos de escala, de implantação, e da opção por uma arquitetura leve e vazada, que dá a quem passa pela calçada a visão do horizonte, graças aos pilotis abertos, além de complementar arquitetonicamente aquele espaço. Basta imaginar qualquer outro tipo de construção ali. A meu ver, seria um desastre. Em arquitetura, qualidade convive bem com qualidade, seja de ontem ou de hoje, desde que haja, como nesse caso, a compreensão, pelo novo, da escala urbana definida pela tradição.

VeraCidade -  Há pelo menos duas décadas, na, digamos, confluência entre os séculos XX e XXI, foi introduzido nas discussões sobre planejamento urbano, o conceito da sustentabilidade das cidades. A Sra. diria que o Brasil está atrasado em relação a essa questão?

Maria Elisa Costa
  - Acho que o Brasil está começando a resolver, de verdade, o problema da desigualdade social que vem desde os primórdios. A equação, a meu ver, é mais ampla: a sustentabilidade das cidades passa pela sustentabilidade do país e até do planeta. Em resumo é preciso estar atento e forte, não temos tempo de temer a vida. Vamos em frente, com menos discurso e mais ação.