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Pelas ruas de Cachoeira: morte, vida, angústias e esperanças* 

 

Wendel Henrique**

 

 A paisagem urbana e o cotidiano das cidades sempre instigam nossa observação e a busca por formas de representação – imagéticas, sensoriais, textuais - que permanecem guardadas em nossas idéias e memórias. Nunca passamos incólumes pelas cidades e suas gentes. O cheiro, as cores, as formas, as conversas e os cumprimentos dos amigos se encontrando, as senhoras fazendo suas feiras e seus olhares sobre aqueles elementos estranhos aos lugares, no caso, nós, os seres exteriores, sempre são marcantes em nossas representações e idéias sobre as cidades. Construir explicações acadêmicas sempre é algo muito mais complexo que a observação e contemplação de lugar, de uma paisagem e um acontecer cotidiano. Esta explicação acadêmica se conforma, em muitos casos, a partir de uma distância da vivacidade concreta de nossas cidades.
 
O bombardeio de imagens e informações nas cidades contemporâneas nos leva a uma paralisia sensorial e sensitiva em nossa vida cotidiana, tanto em relação às formas das cidades quanto aos seus conteúdos humanos, sociais e culturais. Apesar da diversidade quantitativa de eventos, dados e informações presentes nas cidades do mundo contemporâneo, devemos nos ater, neste momento, na qualidade de seus acontecimentos, quer seja a partir da materialização do moderno na grande cidade capitalista ou da passagem lenta do tempo de uma cidade debruçada sobre mundo rural. Qualitativamente, qualquer cidade sempre permite que nossos sentidos captem sutilezas e poesias na forma de uso e apropriação dos lugares. Pequenos gestos e filigranas que ornamentam o cotidiano das ruas de nossas cidades apenas são captados quando nos colocamos a disposição do tempo e do espaço, quando percorremos lentamente os caminhos indissociáveis entre o real e o imaginado, entre o concreto e a poesia, entre o corpo e a cidade.

O desafio que nos propomos neste ensaio é, literalmente, buscar nas representações da ficção um fio para trilharmos na construção de um diário de experiências corporais e geográficas pela cidade de Cachoeira, uma cidade marcada pela força de suas mulheres e por formas particulares de realização de um cotidiano miscigenado.

As ruas e os casarões de Cachoeira, bem como os olhares e gestos de seus moradores, constroem um jogo de claridade e neblina, de visibilidades e esconderijos. Uma trama em vários atos, alguns trágicos e outros luminosos e alegres, que levam ao enlaçamento de casas, pessoas, festas, procissões e irmandades na construção do seu tecido urbano.

Trama 01

"A quem em nossa terra percorre tais e tais zonas, vivas outrora, hoje mortas, ou em via disso, tolhidas de insanável caqueixa, uma verdade, que é um desconsolo, ressurte de tantas ruínas: nosso progresso é nômade e sujeito a paralisias súbitas. Radica-se mal. Conjugado a um grupo de fatores sempre os mesmos, reflue com eles duma região para outra. Não emite peão. Progresso de cigano, vive acampado. Emigra, deixando atrás de si um rastilho de taperas.

[...] Mal a uberdade se esvai, pela reiterada sucção de uma seiva não recomposta, como no velho mundo, pelo adubo, o desenvolvimento da zona esmorece, foge dela o capital – e com ele os homens fortes, aptos para o trabalho. E lentamente cai a tapera nas almas e nas coisas.

[...] Ali tudo foi, nada é. Não se conjugam verbos no presente. Tudo é pretérito.Umas tantas cidades moribundas arrastam um viver decrépito, gasto em chorar na mesquinhez de hoje as saudosas grandezas de dantes.

[...] Erguem-se por ali soberbos casarões apalaçados, de dois e três andares, sólidos como fortalezas, tudo pedra, cal e cabiuna; casarões que lembram ossaturas de megaterios donde as carnes, o sangue, a vida, para sempre refugiram.

[...] São os palácios mortos da cidade morta." (LOBATO, 1919) 

O texto acima de Monteiro Lobato, retrata a vida e as cidades construídas por forças dos ciclos econômicos agrícolas em São Paulo. A mesma força que ergueu grandes construções, casarios e sobrados fortes e imponentes na paisagem urbana é um conteúdo, uma alma fluída e fugaz que sorrateiramente abandona o corpo, esvaziando as formas, derrubando as sustentações, até então inabaláveis, das poderosas cidades do café, do ouro, do açúcar e do fumo.

Recém chegado à Bahia a imagem representada pelo texto de Lobato era o que mais se aproximava da paisagem real, da observação direta da cidade que via, enquadrada pelo rio, pela vertente verde e pela ponte de ferro. Os casarões apalaçados, imponentes com suas fachadas austeras, anteriormente sustentados pelas vigas e colunas do capital comercial, açucareiro e fumageiro, agora eram amparados por vergonhosas estacas de madeira. Muletas de sustentação frágil, incoerentes com a potência inserida na forma e no seu conteúdo esvaziado. O tabuleiro das ruas, anteriormente complementadas em sua linearidade pela circulação das pessoas, naquele dia de domingo ensolarado eram espaços praticamente vazios, aonde apenas o vento vinha trazer o cheiro do rio, vago, sem saveiros, sem vapores. Onde estavam os homens fortes e a mulheres guerreiras enaltecidos aos quatro cantos do mundo? Esvaziada em sua essência mercante, as pessoas vagavam pela busca da sobrevivência em outras paragens, buscavam outros pousos, deixando à margem uma obra coletiva produzida ao longo dos tempos, a própria cidade de Cachoeira. Cachoeira não estava morta, mas estava anestesiada, congelada, esvaziada. A Heróica Cachoeira se escondia sob o pesado e denso nevoeiro da economia.

A fuga da cidade enevoada, na tentativa de novos espaços de esperança, se dá pelo caminho das rodovias, buscando a vida nas cidades onde jorrava o ouro betuminoso em outras áreas do Recôncavo.

Outra visita, uma noite de agosto e compõe-se um contraste. De um lado o vazio das ruas, dos casarões numa tarde de domingo quente e ensolarado e aquela noite de eventos mágicos, de manifestação desta vida potencial, latente e subjugada. Cachoeira, a heróica, não é um cenário morto para um monólogo decrépito. O coração potente ainda batia, num conjunto de casarões pintados nas cores rosa e vermelho, cores quentes para aquecer e fazer despertar a vida. O sangue a correr e animar as carnes, os músculos, os olhos e os braços. A luz das velas carregadas pelas ruas é ofuscada pelo brilho dos olhares e pela força feminina. A cidade morta se levanta num novo sopro de vida, graças às mulheres guerreiras, que sabem que ainda não é a hora da morte de Cachoeira.

Além deste impulso, a cidade recebe novas doses de vida, novas descargas de adrenalina, novos conteúdos que a transformam em cidade de produção de conhecimento acadêmico, com a Universidade. Os casarões recebem cuidados, são recuperados e se metamorfoseiam em patrimoniais urbanos. Chegam também novos visitantes, com suas máquinas digitais, alguns a retomar um laço familiar, uma origem, outros apenas a registrar na memória virtual da câmera, resíduos de espaços e de tempos que permanecem irreconhecíveis.  

Trama 02

Portas e janelas fechadas em uma casa que está de luto. Bernarda, Angústias, Martírio, Adela, mulheres, mães, filhas e empregadas trancadas. Mulheres a discutir seus conflitos e suas aspirações. Espaços e personagens femininos de uma famosa peça teatral de Frederico Garcia Lorca: A Casa de Bernarda Alba.

Um sítio urbano fechado, congelado pelo tombamento. Irmandade de mulheres fortes, corajosas. Angústias e martírios nas transformações do cotidiano. Conflitos e tensões em uma cidade feminina e heróica. Espaços e pessoas reais no desenrolar de uma trama de relações que tomam lugar na cidade de Cachoeira.

A analogia entre a peça de Garcia Lorca e a cidade de Cachoeira, a princípio improvável está fundada nas relações possíveis entre o espaço no qual acontecem as ações, tanto na peça quanto na cidade, e no papel central das mulheres na construção dos enredos e dos cotidianos.

Na peça, a tensão está na concentração de poder e autoridade materna, que comanda os desejos e paixões de duas filhas Angústias e Adela em uma disputa pelo poder de um homem, apenas mencionado – Pepe. Martírio não só no nome de uma personagem, mas no sacrifício feminino para a manutenção das tradições.

Em Cachoeira, o poder e a autoridade anteriormente estabelecidos, tradicionalmente representados no capital cultural e social, entram em uma série de tensões com novos agentes (seriam filhas?) - a UFRB, o Monumento e o Turismo Étnico. Na disputa, algo mais concreto e real, como o espaço urbano ou não tão material, quanto o capital político e o econômico.

Fechados em seu espaço, estes personagens, mesmo no momento da exteriorização da fé no uso da rua para a procissão, os olhares e as rezas, tanto na casa de Bernarda quanto em Cachoeira, concorrem com aqueles que buscam outras direções. A sedução exercida pelos homens que passam com suas tropas no texto de Garcia Lorca é metamorfoseada na cidade pelas janelas do mundo exterior, na sucção do tempo pelo espaço virtual. Sentados e olhos fixos nas telas, os jovens das lan houses não ouvem e não vêem as mulheres com suas vestes específicas no dia da procissão pelas ruas molhadas de Cachoeira. Enquanto as Senhoras da Boa Morte entoam seus cânticos e carregam suas velas, iluminando os caminhos entre os diversos tempos da cidade, abrindo brechas entre o passado e o presente, outras formas de religiosidade se mostram nas casas pentecostais, aos sons dos microfones e com seus rituais próprios. Mas as Senhoras e a Cidade não se abalam, afinal, a tolerância e convívio são peças centrais, tanto para as pessoas quanto para os espaços africanos – indígenas – brancos - masculinos – femininos –transgeneros  baianos. 

Angústias e Martírios em Cachoeira

A opção pela análise da cidade a partir de obras de ficção não é tentativa de romantização de questões fundamentais que se colocam para a discussão sobre a Cachoeira no presente e no futuro. A ficção permite uma poesia no enquadramento de questões que afligem a população local e aqueles que sentem afetividade pela cidade, mesmo não sendo moradores.

A concentração de novos investimentos para dinamizar a economia local, em um sítio urbano tombado, tem provocado a especulação e valorização imobiliária diante da falta de espaços e possibilidade de adensamento. Os preços dos aluguéis sobem e acabam por expulsar os mais pobres para as áreas mais periféricas, sem infraestrutura básica ou para as áreas de risco, nas margens do Caquende, por exemplo.

O conflito entre a modernidade e o tradicional também se faz presente, quer seja no comportamento e na organização social dos novos moradores e usuários, quer seja nas formas e objetos inseridos na cidade, como a delicatessen e o apart hotel. As novas, modernas, padronizadas e refrigeradas formas de consumo de alimentos, contrastam com o calor e humanidade da feira livre.

Outra angústia é risco da museificação do ‘tradicional’, tanto das formas quanto das pessoas. Um espetáculo humano do tempo passado, com a ‘turistificação’ das festas e da religiosidade. Para sobreviver ao mundo da guerra entre as cidades turísticas, Cachoeira se enfeita, a festa se transcreve em inglês, se ‘etnifica’, passa a se dedicar a um nicho de mercado. A mundialização do espaço leva um isolamento de quem não se insere nos modelos predefinidos do museu de gentes e de culturas.

Esperanças

A maior riqueza de Cachoeira está, sem dúvida, em seus homens e, principalmente, em suas mulheres: corajosas, guerreiras, sagazes e humanas. A participação de sua população no processo de planejamento da cidade é fundamental para dar vida nova à cidade antiga. Os novos agentes e obras devem considerar o conhecimento acumulado ao longo dos tempos por todos aqueles que produziram e vivenciaram Cachoeira. As Senhoras da Boa Morte, mais do que serem fotografadas, devem ser ouvidas, respeitadas e não espetacularizadas. Os senhores pescadores na orla reformada da cidade tem histórias e esperanças na Cachoeira reavivada, reanimada. A exclusão dos saberes tradicionais das populações locais sobre o seu lugar leva ao risco de novamente ocorrer a emigração do progresso ou das pessoas, como escreveu Monteiro Lobato, ou mesmo na mercantilização da vida e das relações pessoais, que se tornariam apenas uma relação profissional, assim como na fala de Bernarda Alba para sua empregada La Poncia: ‘Me serves e eu te pago! Nada mais’.

Aqui nada é conclusivo, nada se apresenta como verdade única, talvez nem como alguma verdade. Aqui, a veracidade está apenas na liberdade e na autonomia de se ver a cidade.

 

Referências:

LOBATO, Monteiro. Cidades mortas: contos e impressões. São Paulo: Revista do Brasil, 1919.

LORCA, Frederico Garcia. A Casa de Bernarda Alba. Lisboa: Europa-América, 1988.



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*Agradecimentos a população de Cachoeira e a FAPESB, pelo financiamento da pesquisa “Reestruturação Urbana, Mercado Imobiliário, Turismo e Exclusão Social no Município de Cachoeira. Diagnóstico e Proposições”, que estamos executando no Laboratório de Geografia Urbana e Regional – IGEO/UFBA.
**Professor Adjunto do Departamento e Mestrado em Geografia da UFBA www.citeplan.geo.ufba.br / Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.
 
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