Imprimir E-mail
Foi isso que eu fiz na vida: fazer História
O professor Cid Teixeira* fala de sua vocação, do
 processo de globalização e da expansão urbana de Salvador
 

VeraCidade - O que despertou o interesse do Sr. pela História e como desenvolveu a arte de relatar, de narrar e registrar fatos?

Cid Teixeira - Todo mundo nasce com uma vocação. Há os que nascem para a medicina. Há os que nascem para ser genro de sogro rico. Há os que nascem para estudar engenharia e há os que nascem para estudar História. Eu não imagino, não consigo pensar em ter feito outra coisa na vida, senão estudar e produzir textos, produzir aulas e produzir a mentalidade historicista. Eu não nasci para fazer cálculo infinitesimal, nem a estrutura de uma laje. Eu não sei fazer isso, e graças a Deus encontrei caminhos, encontrei o que fazer na minha vocação. Eu poderia ser vocacionado pra uma coisa que não existisse na Bahia, então eu seria um perpétuo frustrado, seria um bancário, alguma coisa qualquer, querendo sempre fazer aquilo que não existe. Felizmente eu nasci em uma cidade onde nem dez por cento dos arquivos já foram vasculhados até hoje, ainda há muita coisa pra estudar no que me sobrar de vida e aos que me sucederem. Foi isso que eu fiz na vida, fazer História. Tive a felicidade de ser aluno do colégio da Bahia, que no meu tempo era o Ginásio da Bahia. Fiz exame de admissão, fiz o primeiro ano em 1937, ou seja, no ano em que o colégio fez 100 anos, então, o colégio vivia a mentalidade e o raciocínio de comemoração histórica dos 100 anos da casa. Então, esse mergulho nos aspectos históricos da minha escola, fez com que eu raciocinasse sempre à base da criação do Liceu Provincial, e tive a sorte de ser aluno de excelentes professores de História. Eu não fui bom aluno de Química, nem de Física. Estudei bastante para ser aprovado, mas estudei história no ginásio com paixão, porque eu tive quem despertasse isso em mim e, a partir daí, eu fui embora.

 

VeraCidade -  E como esse exercício continua?

 

Cid Teixeira - Eu comecei a desenvolver atividade docente, primeiro em estabelecimentos do ensino médio particular e depois no Ginásio da Bahia. Fui professor de colégios particulares por indicação e aceitação dos respectivos diretores, inclusive o Colégio São Salvador, que na época era um colégio de boa fama. No Solar do Berquó que era uma casa histórica, mataram Gomes Caldeira - a gente dava aula de história numa casa que tinha história.** Todos esses aspectos conjugados criaram uma mentalidade, uma opção de vida, que foi essa de fazer História.

 

VeraCidade -  A História Oral nasce como uma ferramenta para a reconstituição de fatos históricos, onde registros oficiais não existem, ganhando autonomia e estatuto próprio. Qual é a opinião do Sr. sobre a reconstrução da História a partir desse recurso?

 

Cid Teixeira - A história oral é um dos caminhos, é uma das opções, é uma das vertentes do estudo de História. Através do registro histórico, você tem, através do depoimento das pessoas, a visão de cada um sobre a história. Mas, a história oral por si só não faz história, ela é um componente. Documentos, arquivos, a recuperação do monumento em si, tudo isso vai criando uma soma de elementos para recuperação do passado. A história oral é uma vertente, uma das vertentes, não é “a” vertente. Não se faz História somente com a oralidade. No meu caso pessoal, eu ainda conheci, alcancei, vivi junto com pessoas que viveram o episódio da abolição, que conheceram a sociedade escravista e depuseram sobre o processo de integração na sociedade a partir da abolição - fato que mudou totalmente a visão de mundo, da cidade de Salvador. Evidentemente, a história oral é uma das vertentes da história mas não é suficiente, é apenas mais uma das suas vertentes.

 

VeraCidade -  Como o Sr. compreende a relação entre sujeito e objeto do conhecimento na historiografia?

 

Cid Teixeira - Primeiro é preciso amor, é preciso gostar de fazer as coisas. Se não há empatia da pessoa com o objeto de estudo, não se faz coisa nenhuma, é preciso que haja uma relação de amor entre quem está fazendo a pesquisa e o objeto de estudo. Frequentar um arquivo para algumas pessoas pode ser uma coisa chatíssima. Talvez fosse mais interessante, mais “importante” frequentar um laboratório, usar um microscópio para achar um micróbio. Mas é preciso fazer pesquisa para entender a estrutura social. É preciso frequentar o arquivo público para, por exemplo, entender quem foram e quem são as nossas lideranças. É preciso fazer um inventário de alguém que foi rico, que foi milionário, que foi fundador da Caixa Econômica no séc. XVIII, e saber o que foi feito dos seus atuais descendentes. Cadê seus netos e bisnetos atuais? Essas pessoas que hoje estão na liderança da sociedade, quem eram seus bisavós, quem eram os seus avós?  As mudanças sociais, as mudanças dos indivíduos, das estruturas familiares, das estruturas dos organismos, das coisas públicas em si. O que significa ser vereador no séc. XVIII, ser vereador hoje, é a mesma coisa? Não, não é a mesma coisa. O que mudou nos indivíduos e na sociedade, para que determinadas opções, determinadas estruturas ganhem vitalidade e outras pereçam? Para compreender esses processos é preciso fazer pesquisa e para fazer pesquisa é preciso gostar do que faz.

 

VeraCidade -  O senhor nasceu em Salvador, como é a relação do Sr. como historiador com essa cidade?

 

Cid Teixeira - A cidade de Salvador ainda não fez um por cento de sua história. Eu, por exemplo, deixei de fazer muita coisa que poderia ter sido feita. Deixei de fazer muita coisa para meus netos e bisnetos. Genealogicamente falando cada qual escolhe seu caminho de vida, sua profissão. Eu não tenho netos historiadores, eles escolheram outros caminhos na vida, fazem coisas que não tem nada a ver com História, é a vida de cada qual. E o extraordinário é que a cidade de Salvador é, realmente, um campo de cultura fantástico pra você estudar História, pra estudar o séc. XVI, o séc. XVII, XVIII, XIX, XX e já agora o séc. XXI. Quando me refiro ao século é pra limitar no tempo, mas evidentemente, historicamente e sociologicamente, um século invade o outro, ele não termina no dia 31 de dezembro do ano tal. Nós encontramos agora, no ano 2010 sobrevivências do séc. XVII na cidade. É preciso identificar o que é que permanece idêntico e o que é que sofreu intercalações, modificações, no decorrer do tempo, isso é que é fazer História, e a História é um organismo vivo, uma forma de identificação e interpretação do que ocorre ao longo do tempo.

 

VeraCidade -  O senhor afirma que Salvador é um campo de cultura, o que nos remete a noção de identidade. Como o Sr. compreende esse conceito e como o mesmo está sendo tocado pelos atuais processos de globalização?

 

Cid Teixeira - O processo de globalização vai ser um dia melhor estudado. Não é agora, porque a sociologia ainda está vivendo o processo em curso. Um exemplo concreto: daqui há algum tempo vão dizer que no começo do séc. XXI o baiano tinha vergonha da língua portuguesa. Observe os nomes dos centros comerciais, dos edifícios, das ruas da cidade de Salvador, a grande maioria tem nomes estrambóticos. Você imagina que alguém batizaria um centro de compras como “marchant”? “Marchant” era o nome que se dava ao açougueiro, ao comerciante de carnes do séc. XVII e XVIII.
Identificar a nossa inserção ou não inserção na globalização é uma coisa muito importante. Vejamos a partir da língua, a partir dos costumes, como nos relacionamos com a globalização. Criou-se um processo de identificação do “ser baiano” por caminhos às vezes até engraçados. Pra quem não está envolvido em História não é historicismo coisa nenhuma, é o viver cotidiano, mas pra quem estuda História, é engraçadíssimo, por exemplo, ver as pessoas em um edifício de apartamentos. Eu, pessoalmente, sou de um tempo em que se discutiu muito a construção de um edifício de apartamentos na cidade de Salvador. No primeiro edifício (e eu sou testemunha ocular) constituído em Salvador, que está na rua da Graça até hoje, morava uma grande família, cada qual em um apartamento. Discutia-se nos jornais se daria certo ou não morar mais de uma família em um imóvel com apenas uma porta de entrada. Você discutir isso hoje é uma forma de fazer História. Temos aqui ao redor dessa mesa sete pessoas e garanto que a grande maioria deve morar em apartamento – você, por exemplo, deve morar em apartamento, tem cara de quem mora em apartamento. Estudar o significado da mudança da moradia da casa com quintal para o apartamento e a mudança sociológica verificada na mentalidade das pessoas é muito interessante. A casa tem o “lá dentro”, minha casa tem “lá dentro”, você entra e tem a sala de estar, hoje você tem o “living”... A análise histórica dessas transformações constitui capítulos de uma história social da cidade.

 

VeraCidade -  O que é que significa ter um quintal?

 

Cid Teixeira - Eu tenho um pé de manga na minha casa, você entra e esbarra com um pé de pitanga. Pra um menino que mora no 18º andar de uma rua nova aberta em um bairro novo, pitanga pra ele é tão estranho quanto um rinoceronte, ele não sabe o que é isso, ele nunca viu um pé de pitanga. Meu bisneto sabe o que é uma pitangueira, ele sabe o que é um sapotizeiro, porque ele mora numa casa onde tem essas coisas. Isso tudo comparado com o processo de evolução social, como a criação de novos bairros em áreas que eram fazendas. Aqui onde eu moro, na Pituba, era uma fazenda de um cidadão chamado Joventino Silva. Quando eu era menino onde hoje é minha casa, por aqui tudo, era um curral, tinha boi. Você saia do mato pra uma rua asfaltada, um bairro que, por sua vez passa a dar origem a outros bairros, tudo isso é evolução social, é História urbana.

 

VeraCidade -  O Sr. falou em “ser baiano”, o que é que é isso?

 

Cid Teixeira - Ah, se for para tratar desse assunto, não é mais uma entrevista, é uma enciclopédia! Você nasce em uma cidade que coexiste entre a tradição, entre o apego a um passado, às vezes distorcido, e a necessidade sociológica de estar agregada ao futuro. É uma cidade viva, não morreu, não virou museu. Você tem áreas, tem edifícios, tem mentalidades que estão no passado, mas tem áreas, tem edifícios, tem mentalidades que estão no futuro e basicamente estão no presente. Esta coexistência faz com que Salvador não tenha se sedimentado, não tenha se mumificado como outras cidades, que tenha preservado uma vivência, uma vitalidade, que permite coexistir o passado e o presente.
O baiano, o indivíduo baiano é naturalmente orgulhoso e resistente, o que me parece muito positivo, ele se sente patrioticamente baiano. Não é à toa que o 2 de Julho levou anos e anos que não era feriado, não tinha sido homologado oficialmente, mas você não imagina ninguém abrindo um banco pra trabalhar em um 2 de Julho na cidade do Salvador. Ele é baiano. A demora em se oficializar o feriado do 2 de Julho me parece o grande exemplo que se pode dar a esse respeito. Salvador, é uma cidade que construiu a sua fisionomia, ela não importou, ela criou a sua identidade como tal, ela não é a cópia de nenhuma outra cidade. Ela não quer se comparar a Nova York, não quer se comparar a São Paulo, não quer se comparar com Pequim, não quer se comparar com coisa nenhuma.  Ela é uma identidade. O ser baiano faz com que você seja baiano mesmo. E há mais, existem várias Bahias. Existe uma Bahia que é a cidade do Salvador, existe uma Bahia que pode ser centralizada em Juazeiro, vamos dizer assim; uma Bahia que tem como referência a área que era do Cacau, que tem uma mentalidade, um outro jeito de ser. Os netos dos ricos cacauicultores são outra coisa em função das mudanças sociológicas e econômicas daquela área. Nós, da cidade do Salvador, conformamos várias cidades que se integraram ao longo do tempo. Quando se construiu o Cais, a área do Comércio, a Cidade Baixa, mudou inteiramente de fisionomia. As intervenções urbanas vão, por sua vez, criando novas mentalidades, a expansão demográfica vai criando novos bairros, tudo isso vai fazendo com que a cidade seja um organismo vivo, não seja um presépio.

 

VeraCidade -  Como o Sr. compreende a expansão urbana de Salvador nas duas últimas décadas?

 

Cid Teixeira - A cidade mudou muito. Você mora em uma cidade que, na minha época, vamos falar agora em termos pessoais, do Largo do Teatro (era como nos referíamos a Praça Castro Alves) até o Campo Grande só tinha uma casa comercial: as Cem Mil Meias - lugar onde se comprava meias para senhoras, meias compridas com elástico, tudo o mais era residência. Eu conheci gente morando tranquilamente no Largo da Piedade, no São Pedro, em toda a Av. Sete, onde hoje é uma raridade você encontrar uma casa residencial. A Amaralina inteira era uma fazenda do Sr. José Alves do Amaral, daí o nome de “Amaralina”, a casa onde ele morava foi ampliada, modificada, e hoje é um quartel, uma área de ocupação militar. A capela da casa dele, a capela onde tinha missa da família dele, dos agregados e moradores, hoje é a Capela da 6ª Região Militar. Então, o que era uma fazenda passou a ser um bairro. A mesma coisa aconteceu com Santa Cruz, eu conheci a fazenda Santa Cruz, era de pessoas ligadas a mim, e hoje é um bairro popular, e é um bairro que continua a crescer.  Hoje, bairros que já tiveram uma importância muito grande diminuíram seu caráter residencial. Em áreas como a de Itapagipe, que está mais ou menos estacionária, se observa uma certa coexistência entre a atividade comercial e residencial. Aqui no bairro da Pituba, quando eu vim morar aqui existiam ruas que eram exclusivamente residenciais, hoje, no Caminho das Árvores tem ruas inteiramente comerciais. O Caminho das Árvores era a fazenda do Dr. Saldanha, e hoje tem ruas inteiramente comerciais, e granfinas. Antigamente, você ia comprar na venda, todo bairro tinha uma venda, duas vendas. Hoje você vai no “shopping”, vai no supermercado, felizmente ainda não chamaram de “supermarket”!

 

VeraCidade -  O senhor viu nascer o Centro Administrativo, como o senhor vê hoje o crescimento da cidade em direção a Paralela, Acesso Norte e Cabula?

 

Cid Teixeira - Antigamente você tinha os centros de cidades. As senhoras, as moças iam pra a Rua Chile, se paramentavam: “Quinta-feira que vem eu vou pra a Rua Chile”, então, você escolhia hoje o vestido pra ir pra a rua Chile comprar coisas. O centro da moda era a rua Chile. Se você tinha uma renda social e familiar mais modesta, você ia à Baixa dos Sapateiros. Se você tivesse uma estrutura social ainda mais modesta, ia à Calçada. Você não tinha outro jeito de comprar coisas. No tempo que eu morava no Rio Vermelho, havia um automóvel no Rio Vermelho - um morador do Rio Vermelho tinha um automóvel, era do Sr. Adolfo Moreira, o dono da pedreira (onde hoje se encontra o Hotel Pestana). Então, ao longo do dia fazíamos a seguinte pergunta: “já passou o automóvel?”, “o automóvel ainda não passou hoje“, “cadê o automóvel?”. Só tinha um automóvel. Eu me lembro de cor, sou capaz de dizer agora, os automóveis da minha infância na cidade de Salvador com seus números de placas. Eu sei que o número 1 era do Sr. Lucas, o número 9 era do Sr. Tobias. Eram tão poucos os automóveis que um garoto de 10, 12 anos sabia quais eram os carros, a cor, as marcas, o dono, tudo. Hoje você vai sair à rua e não sabe o automóvel do seu vizinho. Não sei se ele tem automóvel, não tenho segurança pra dizer isso. Mas também tem esse lado histórico e sociológico, nós nos insulamos muito, cada qual em sua casa, no seu modo de ser, no seu amigo, no seu colega, que pode morar em Itapagipe, em Itapuã, não tem importância. Antigamente, a vida gregária, a vida de bairro era muito mais sólida do que é hoje, havia uma fisionomia sociológica do morador de Itapagipe, havia uma fisionomia sociológica no morador de Santo Antonio, da Liberdade. Eu sou do tempo no qual a estrada da Liberdade era barro, era mato, era lama, eu tinha uma namorada que ensinava na escola Duque da Caxias e eu saia do Largo da Lapinha, onde terminava o bonde, dali em diante a gente ia a pé para buscar a namorada. Você vê que o mundo mudou, não é? A mudança urbana, a mudança de edificações, da rua, tudo isso vai mudando a cidade. A cidade é um organismo vivo, é bom lembrar isso, estudar História não é estudar múmias, é estudar a evolução de tudo isso.

 

VeraCidade -  O Sr. acha que a sociabilidade hoje é mais pobre ou simplesmente é diferente?

 

Cid Teixeira - A Salvador antiga era mais sociável, porque as pessoas dependiam mais umas das outras. Hoje elas dependem mais do apoio do serviço público. Você estava doente e o chá que a vizinha lhe ensinava era muito mais importante, porque você só tinha alguns médicos na cidade, médicos com respeito, com alguma clientela. A saúde era tratada na base da herança sociológica, na base do chá de capim santo, do chá de vassourinha rufina. Hoje você não faz mais isso. Hoje você toma aplicações, vai fazer radioterapias e fazer não sei mais o quê. Se você sentia algum problema de saúde você procurava um clinico geral que dava conta de tudo, hoje você vai a especialistas e as especialidades se desmembraram ainda mais, são agora especialistas. Os médicos cuidavam dos olhos, ouvidos, nariz e garganta, hoje a especialidade vai se determinando, os oculistas se desmembraram, passaram a ser outra coisa. Eu estou dando um exemplo da medicina, mas pode ser aplicado à Engenharia, pode ser aplicado ao Direito, pode ser aplicado a qualquer profissão, a qualquer atividade. As pessoas eram muito mais polivalentes do que são hoje.

 

VeraCidade -  A especialização empobrece a percepção?

 

Cid Teixeira - Não, não é um problema de empobrecimento. É que não se tinha opções. A opção era muito reduzida. Em primeiro lugar, o transporte era difícil. Se você morava no Rio Vermelho, a não ser as pessoas que trabalhavam na “cidade”, ninguém saía do Rio Vermelho, você tinha uma identidade riovermelhense. Eu morava no Rio Vermelho e ia pra o colégio sentado na ponta do terceiro banco do bonde. Esse era o meu lugar. A outra ponta, na terceira fila era do Dr. Alfredo Magalhães. Você tinha lugares... Você não tinha outras opções. As pessoas moravam em determinado local, havia uma fisionomia do morar em Itapagipe, do morar no Rio Vermelho e no Santo Antônio. Havia uma identidade, você conhecia pessoas com meia hora de conversa. Um morador da Liberdade levava anos para ir na Graça, à Avenida, e ao corredor da Vitória. Eram moradores que tinham uma relação entre si, não com a cidade. Hoje não, o “shopping” nivelou todo mundo, você sai de Itapagipe pra ir no Iguatemi, como sai da Vitória, como sai da Pituba. Isso criou uma fusão sociológica na cidade.

 

VeraCidade -  A modernização desconstrói essa identidade...

 

Cid Teixeira - Ah, perde. Se eu mudar de vida e passar a morar em Itapagipe, eu não serei recebido como um estrangeiro, como seria há 40, 50 anos atrás. Hoje não. Eu não sei onde você mora, mas se você viesse morar aqui, for meu vizinho, seria uma pessoa normal da comunidade.

 

VeraCidade -  Entretanto, nós temos hoje moradores do Subúrbio, por exemplo, que nunca foram ao centro de Salvador. Isso pode ser qualificado exatamente como identitário ou como segregação sócioespacial?

 

Cid Teixeira - Do subúrbio em diante, da Calçada, Lobato, Itacaranha, Escada, Periperi, Paripe, ainda resta, eu não diria segregação, mas ainda resta esse sentimento de identidade com o seu local de vida. Para determinadas gerações, por exemplo, o Rio Vermelho é uma referência. Eu vim morar na Pituba por questões econômicas, eu pude fazer a casa aqui. Eu morei na Federação. Minha casa de infância está viva ainda, ela hoje é o centro dos estudantes, o DCE. Onde é a Faculdade de Arquitetura era a casa de “Seu” Berengue. Onde hoje é a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da UFBA era o fim do mundo - o bonde ia até ali, dali em diante era ladeira do Quebra e da ladeira do Quebra em diante era subúrbio. Onde hoje é a Cardeal da Silva, antes era o Mata-Maroto América, era o Seminário dos Padres (onde hoje é o campus da UCSAL).  Era isso que era a Cardeal da Silva. E é isso que é fazer História, é estudar a vitalidade da cidade que vai crescendo, que vai mudando...

 

VeraCidade -  Como é viver em Salvador hoje?

 

Cid Teixeira - É viver em uma cidade de porte médio, em uma cidade com 3 milhões de habitantes, com tudo que uma cidade de 3 milhões de habitantes pode ter, de bom e de ruím. Hoje, você tem facilidade de comprar as coisas... O meu bisneto, vai encontrar uma cidade diferente dessa e quando ele tiver a minha idade vai ter em relação à cidade, como hoje aqui, a mesma dissociação que eu tenho em relação a essa cidade de hoje. Eu morava, garoto, na Federação. Só vou dar um exemplo: alguém aqui sabe onde é o Queima? É a área que ia do cemitério do Campo Santo até o terreno onde está a Escola Politécnica. Ninguém se referia aquele lugar como Federação, todo mundo dizia “eu moro no Queima”. O Queima era a entrada de São Lázaro, por ali assim... Esse nome resulta de um incêndio no séc. XIX que queimou uma pequena floresta, uma pequena vegetação, o que resultou no nascimento do Alto das Pombas. Repare como a cidade é dinâmica, como vai mudando... A sua geração não sabe o que é o Queima. A Federação era da Escola Politécnica até a Escola de Arquitetura, aquilo que era a Federação, acabou-se. Era o Campo Santo, Queima e a Federação. O Queima desapareceu, ninguém mais fala.  A cidade é dinâmica...

 

VeraCidade -  Professor, e a relação entre Salvador e o Recôncavo?

 

Cid Teixeira - Ai já é outra coisa, já é outra conversa. Salvador era uma cidade internacional, o Recôncavo era fechado em si mesmo. Preste atenção às grandes fortunas do açúcar. O homem rico, dono de engenho de açúcar, não morava no seu engenho, morava em Maragogipe, em Santo Amaro, em São Francisco do Conde, menos em Cachoeira. Era uma outra sociedade. A casa grande, a senzala, o casamento entre os primos pra manter a fortuna dentro da família. Não casar com o primo era uma violência social. O Recôncavo é outra coisa, é outra conversa, não é possível comparar Santo Amaro com Salvador. Até hoje não é! Apesar do telefone celular, apesar de todos os progressos, a identidade é diversa. Imagine no séc. XVIII, era tudo muito mais separado. Hoje, é normal morar na Ilha de Maré e ir para Salvador. No meu tempo de garoto e de rapaz morar na Ilha de Maré era muito distante, a pessoa nunca saia da Ilha de Maré, nunca ia a Paripe, quanto mais na Pituba... Não se sabia onde era. Na verdade não existia a Pituba, como é que ele viria a Pituba? Na casa dos outros, na casa de Sr. Joventino?

 

VeraCidade -  O Sr. acha que com o processo de expansão da cidade ainda é possível falar de identidade de bairro, essa vinculação com o território subsiste?

 

Cid Teixeira - Isso vai se perdendo, não se perde do hoje pra amanhã. Não se vira uma página de um dia para o outro. Na verdade é um permanente processo, que não tem começo e que nunca termina, e vai se desdobrando. A própria Pituba, vamos dizer assim, começa a ter sub-bairros dentro dela, você mora no Itaigara, você mora na Nossa Senhora da Luz, você mora em sub-bairros da Pituba. E há pessoas que moram no Itaigara e que não vão em Nossa Senhora da Luz. Eu levo tempos que não vou no Parque Júlio César, nem me lembro de ter ido lá, sei que existe, vou lá a hora que eu quiser, mas não é o meu lugar de vida, e é natural que seja assim. Mas isso existe em tudo que é lugar do mundo. Você mora em um território e vai a outro quando tem necessidade, você não anda o tempo todo correndo a cidade...

 

VeraCidade -  O Sr. acha que hoje é possível conceber a estruturação da gestão municipal, levando em conta o recorte de bairros?

 

Cid Teixeira - Eu acho que sim, que isso é muito importante. Falta à gestão municipal, de um modo geral a consciência dessa dimensão territorial, da dimensão de bairro... Não é esse prefeito nem aquele prefeito, falta à gestão municipal essa dimensão. Pensa-se às vezes que uma lei municipal atinge igualmente a cidade. Não atinge. Existem dispositivos que dizem respeito apenas a determinados bairros, a determinados segmentos da cidade. Por isso eu acho que o vereador deveria ser distrital. Eu sei que isso pode chocar as pessoas, mas eu considero, eu continuo achando que o voto de vereador devia ser distrital. O vereador de Paripe, Coutos, até Lobato... O vereador da Pituba, eleito pelos moradores de determinado segmento da cidade, para que a cidade tenha quem lhe defenda sempre. Não adianta tomar medidas que não são aplicáveis ao todo da cidade. Há medidas que são fundamentais para um todo da cidade, é claro. Mas há medidas que são evidentemente segmentáveis. Medidas que só dizem respeito a determinadas áreas da cidade.

 

VeraCidade -  E as desigualdades sociais em Salvador?

 

Cid Teixeira - Essas existem em todas as cidades do mundo. Em Londres você tem que meter a mão no bolso pra dar uma esmola. Em Londres e Paris não é diferente não. Tem mendigos, sim senhora, em Nova Iorque. Eu dei dinheiro pra alguém que estava lá com a mão estendida pedindo dinheiro. Não é novidade nenhuma se ter rico e pobre em todas as cidades do mundo. Tem classe média em todas as cidades do mundo; sejam elas socialistas ou capitalistas, a condição humana permanece a mesma.

 

VeraCidade -  Não somos comparativamente mais desiguais?

 

Cid Teixeira - Depende do bairro. Eu lembro da minha estupefação de meter a mão no bolso, tirar um centavo e botar na mão de um mendigo, na 5ª Avenida. Eu senti um impacto sociológico, pode crer em Deus. Eu tinha ido visitar a sede da ONU - Organização das Nações Unidas. Na saída tinha um cidadão me pedindo esmola. Isso sempre existiu. Então, não é por que é em Nova Iorque que não tem mendigo, que não tem classe baixa. Tem gente vivendo Deus sabe como; comendo como Deus ajuda. Do mesmo modo que na Bahia – aqui tem fome. Tem gente que não tem o que comer. E tem gente que joga comida fora. Isso acontece em todas as cidades do mundo, não é uma particularidade baiana.

 

VeraCidade - A concentração de renda aqui não é relativamente maior? 

 

Cid Teixeira - Sim. No Brasil de um modo geral a concentração de renda é maior. Agora, muito maior e muito mutável. Eu vou te fazer agora uma pergunta; eu vou inverter essa entrevista. Dê-me exemplo de uma fortuna de três gerações em Salvador. Avô rico, filho rico e neto rico. Eu quero uma fortuna de três gerações na Bahia. Dá-me um exemplo! A fortuna do cacau foi embora, a da cana foi embora, a do gado... Os homens ricos da minha infância hoje tão vivendo média e baixamente... Vejo pessoas que hoje ficam em pé na fila esperando ônibus, cujo avô tinha pelo menos dois carros. Então a cidade é um organismo vivo, é um organismo mutante. Temos fortunas novas, cujo avô vendia quiabo ali na rua, mercando. Então, a cidade é um organismo vivo.

 

VeraCidade - A volatilidade hoje é maior? 

 

Cid Teixeira - Ah, é sim. Tudo está muito acelerado, muito acelerado. Outro dia veio aqui alguém vendendo uma terrina.  Não vou falar o nome porque não é elegante. Eu comprei na mão de alguém que precisava de dinheiro para comprar feijão e açúcar. Essa terrina fez parte do aparelho do dia a dia de uma família, de alguém que, nessa cidade, foi a maior expressão econômica do seu tempo. Vendeu pra comer! Porque sobrou isso, viu? No resto da casa não tinha mais nada, isso é o que sobrou. A última peça que tinha um valor... Vendeu-me chorando! Eu não posso fazer outra coisa... É um monumento mais do que um enfeite, entendeu?

 

VeraCidade - E as questões étnicas e raciais em Salvador? 

 

Cid Teixeira - Você conhece algum branco na cidade de Salvador?

 

VeraCidade - Puro não. 

 

Cid Teixeira - Humm. Ah, branco é branco ou não é branco! Não tem esse negócio de puro e não-puro! Branco é branco ou não é branco. Não há mais ou menos. Não pode haver. Acho que o cônsul da Dinamarca talvez, o cônsul da Suécia que mora por aí, não sei, é capaz de ser branco. Nós não somos brancos. Mais recentemente tem-se tido uma preocupação étnica muito grande. Eu tenho, é meu, está no meu escritório, o ferro com que a minha bisavó paterna foi ferrada. Ela era escrava. É meu. Ela veio da África, e era negra escrava e ferrada a fogo. Meu bisneto é louro. Meu bisneto, trineto dela ... Ele é louro. Misturou tudo, minha filha! Você eu não sei; com esse cabelo claro assim pode pensar que é branca baiana, muito bem. Mas se você saltar na Islândia, por exemplo, ninguém vai achar que você é branca não... Há uma tentativa de valorização negra. Então há o bloco afro, e centro afro, e os negros, falam nego pra lá, nego pra cá... Primeiro, eu tenho muitas dúvidas se alguns negros baianos seriam considerados negros se saltasse hoje no Gabão ou na Nigéria. Eu não sei se ele seria negro lá, ele é negro aqui. Branco também...
Muito sujeito que tem na carteira de identidade “cor branca”, salta na Finlândia, e você diz que é mulato, tranquilamente, tranquilamente... Aqui é que começa achar que é branco porque tem o olho assim, tem o cabelo assado, e tem a cor “não-sei-o-que”... A minha tia era mais escura, minha mãe mais clara. Repare sempre há uma coisa mais identificada ou então esconde, então é meio longe. E tem uma porção de escapatórias... Na verdade nós todos somos uma vasta mulatice.

 

VeraCidade - Como é que o senhor vê as políticas afirmativas? Por exemplo, no âmbito da universidade, a institucionalização de cotas para pobres e para negros? 

 

Cid Teixeira - Eu acho um crime! Sou absolutamente contra as cotas na universidade. Teodoro Sampaio foi o maior engenheiro que essa cidade já produziu. Teodoro Sampaio é nome de município e a mãe de Teodoro Sampaio era escrava. Eu me dei o trabalho de estudar: cadê os descendentes de Teodoro Sampaio? Estão aí, empregadinhos. Teodoro Sampaio era filho de escrava com padre... O pai nunca o reconheceu; evidentemente que o pai não iria reconhecer ninguém, o pai dele era padre de Madre de Deus... Não vem ao caso detalhar. Ele foi engenheiro, e até hoje o sistema de esgoto da cidade de Salvador, a retificação do rio Tietê em São Paulo, obras básicas, fundamentais das grandes cidades foram feitas por ele. Teodoro Sampaio, negro, que eu conheci, eu era menino... Morreu em 37, eu era garoto; eu tinha 10 anos ... Ele era amigo de meu pai. Ele apareceu lá em casa... negro, elegantíssimo, de gravata. Foi com ele que eu aprendi a tomar sopa, levando a colher de cá pra lá, e não de lá pra cá, ele me ensinou isso, eu não me esqueci. Pois é, então existe mobilidade.

 

VeraCidade - Professor, nós não temos uma dívida histórica? O passado colonial, escravista não colocou parcela considerável da população negra em uma situação de exclusão? A população negra não se insere de forma precária nessa estrutura que se modernizou... 

 

Cid Teixeira - Voltemos ao exemplo de Teodoro Sampaio. Há pessoas contemporâneas de Teodoro Sampaio que não saíram disso, da condição precária e subalterna. Não é protestando que se chega a algum lugar. Cite um negro hoje no porte de Teodoro Sampaio! Conhece algum? Qual é o médico negro baiano hoje que se compara com Vidal da Cunha, que era negro; como Percival Vasconcelos, que era negro, que eu conheci, cadê? Por quê? Ao invés de estudar na Escola Politécnica ele vai bater tambor, e acha que com isso está afirmando alguma coisa. É preciso ter muita coragem pra dizer isso.

 

VeraCidade - O negro e pobre tem possibilidade de escolha? 

 

Cid Teixeira - Tem, sim senhora, tem! Só não estuda quem não quer! Só não estuda quem não quer. Eu digo por mim, que perdi meu pai quando tinha 9 anos de idade, minha mãe fez marmita pra vender, porque precisava da sobra pra a gente comer em casa. Só não estuda quem não quer! Ninguém deixa de estudar por falta de condição material não, isso é desculpa pra fazer cota e maluquices desse tipo. Eu sei que dizer isso causa impacto, eu sei que dizer isso cria constrangimentos. A única cota decente no mundo é botar o rabo na cadeira, estudar e fazer concurso, pronto! Eu só acredito nessa cota, em outra eu não acredito não! Se você deu uma matrícula de graça, ou uma matrícula preferencial porque ele é negro, ou porque ele é branco, ou porque ele é azul, isso é maluquice; é maluquice! Eu penso na minha geração. Mulato igual a mim. Branco, porque alguns que pensavam que eram brancos.  Alguns deram certo outros não deram. Edson Nunes da Silva foi meu colega.  Grande professor de Inglês. Foi para Nova York. Aliás, para Londres fazer curso de especialização. E era negro baiano. Ele suou para ser professor de Inglês. Negro baiano que se especializou em professor de Inglês. Milton Santos, que foi meu colega de turma. Formou-se comigo em Direito. Você já viu alguém mais negro do que Milton Santos? Precisou de cota para ser Milton Santos? Alguém deu cota alguma a ele?

 

VeraCidade - Professor, não temos uma sociedade, um imaginário, racista? 

 

Cid Teixeira - Temos um imaginário racista curiosíssimo. Eu tenho um caso concreto perto de mim. Uma irmã de um grupo de quatro, saiu, vamos dizer assim, mais mulata do que as outras. Ela tem uma discriminação doméstica. Uma discriminação interna. Para você ter uma idéia, a mãe catolicíssima organizava uma procissão. Na ora de saber quem iria se vestir de anjo disse: você, não, que é mulata. A mãe, dizendo para a filha – você não, porque você é mulata. Esse episódio eu vi e me marcou profundamente. A mãe da mocinha achou que não, anjo mulato? Que maluquice. Eu vi. Esse eu posso dar o testemunho com a mão na bíblia.

 

VeraCidade - E a Iemanjá? Os pescadores rejeitaram a possibilidade de uma Iemanjá negra. Para eles Iemanjá era uma mulher loira. 

 

Cid Teixeira - O mito de Iemanjá não é um mito africano. A Iemanjá na África é negra. Mas a Iemanjá que veio para cá foi a européia. É loira de cabelos compridos. Essa é a imagem que você tem. Se você chegar com essa imagem de Iemanjá na Nigéria hoje, ninguém vai identificar como Iemanjá. Iemanjá na áfrica é uma negra com seios enormes, essa é a Iemanjá na África. Pois é, esse anjo não podia ser mulato. Ele tinha que ser loiro.

 

VeraCidade - E então, diante dessa cultura racista, não é possível, necessário construir uma política afirmativa? 

 

Cid Teixeira - Dá para deduzir disso um tremendo complexo de inferioridade. Então espicha o cabelo para parecer que é menos negra. No meu tempo tinha uma tesoura esquisitíssima e o fogareiro ao lado ... Hoje não usa mais isso. Hoje deve ter outras técnicas...

 

VeraCidade - O Sr. falou em identidade, do “ser baiano”. O conceito de identidade contida nessa expressão tem relação com a questão racial? 

 

Cid Teixeira - Criou-se mais recentemente na Bahia, esse negócio de segregação, de afirmação e discussão racial. É coisa mais nova. Antigamente havia uma situação capaz de dar vez a negro capaz. Vejam alguns exemplos: você quer mulato mais mulato do que Simões Filho? Era o dono do jornal A Tarde -  o jornal mais importante da cidade. E Álvaro Cova? Um mulato como Neves da Rocha? Temos Edvaldo Brito. Precisa de outro exemplo? O prefeito João Henrique. Ele não sabe que é preto. Se não disser a ele, ele não sabe. Mas é natural que seja assim. Temos uma cidade “polinascida”, independente dessas integrações todas. Agora, em alguns momentos interessa dizer que é negro, interessa dizer que é branco. Porque isso dá lucros ... Confere liderança. Você quer alguma coisa mais ridícula do que bloco afro no carnaval?

 

VeraCidade - Mas Prof. não tínhamos blocos que se diziam brancos e que impediam a entrada de negros? 

 

Cid Teixeira - Tinha. Assim como tem bloco negro que impede a entrada de branco. Eu acho absolutamente ridículo em uma cidade como Salvador, você discutir questões étnicas. Porque tudo é realmente uma grande mistura. O grande trabalho é convencer o cidadão que ele não é branco. Nessa sala aqui agora, ninguém seria considerado branco na Suécia. Vá na Suécia e diga que é branca. Vão dar risada de você.

 

VeraCidade - O Ilê não surge como resposta aos Internacionais? 

 

Cid Teixeira - Sim. É tão ridículo um quanto o outro. Na Bahia, na cidade do Salvador? Todo dia eu digo. Devia-se criar o dia da consciência mulata. Vocês dão risada, mas é verdade. É para as pessoas se convecerem que não são nem pretas nem brancas. Eu sei que isso choca muita gente. É engraçado isso. O atual prefeito, ora meu Deus do céu, é neto de Sr. Barradas que veio de Portugal. Mas a mãe do lado materno é tudo mais ou menos misturado. Mas vai dizer a ele que ele não é branco. Ele não acredita. Não entra na cabeça, nem dele nem de muita gente. Não estou falando dele particularmente não. Vá dizer a um negro baiano que ele não seria percebido como negro na Nigéria ou no Gabão. Vá dizer. Nós somos o resultado de 400 anos de integração étnica. No Império não foi diferente não. O Barão de Cotegipe, por exemplo. Houve um movimento no parlamento do Império no qual um adversário político fez um trocadilho em relação a eloqüência parda dele... Hoje, o Barão de Cotegipe é nome de avenida. Conheci o neto dele - um mulato baiano mais “escovadinho”. E Wanderlei Pinho, que virou nome de rua? Históriador de alto padrão, que conheci muito. E Edson Carneiro? Eu conheci Edson Carneiro, um mulatissimo baiano, qual é a dúvida? Professor Conceição Medeiros, negro baiano. Elias Nazaré, negro baiano. Não precisaram de cotas pra coisa nenhuma não! Acho cotas um negócio indecente! O que precisava era uma escola primária boa, isso sim! Escola pública boa, isso sim, o que não tem. Eu fui aluno de escola pública, escola primária pública - não foi escola particular. Foi a Escola Visconde de São Lourenço, no Garcia. Minha professora Militina era negra, me ensinou a fazer equação. Até hoje quando eu estou esperando alguém, fico fazendo equação de segundo grau para me divertir. Aprendi na escola primária, com uma professora negra. Aqui ninguém é branco. Nos padrões que você tem na Europa de branco, você não tem branco nenhum na Bahia.

 

VeraCidade - Lideranças do movimento negro dizem que a polícia sabe a diferença entre negro e branco na Bahia...

 

Cid Teixeira - Os “preconceituosos”, não especificamente da polícia, os preconceituosos sabem a diferença. Até quem pensa que não tem preconceito acaba tendo. Se parar pra fazer exame de consciência percebe que tem preconceito. Eu vejo isso aqui. Batem no portão: “Tem uma moça aqui na porta querendo falar com o senhor” ou “Tem uma criatura na porta querendo falar com o senhor”. Eu já sei a diferença qual é: “Uma moça querendo falar com o senhor” é uma coisa, uma criatura é outra. Criatura é a forma elegante, é a forma metafórica de dizer que é uma negra que está aí na porta. Você nunca viu isso não? Não sabe qual é a diferença entre “uma moça” e “uma criatura”? A criatura é um elemento de escapatória, pra dizer que não tem preconceito. A “criatura” faz um acarajé que é uma beleza! É quase da família. Ganhou um vestido novo no natal e pronto.

 

VeraCidade - O Sr. falou do seu bisneto. Como o Sr. imagina a Salvador do futuro? 

 

Cid Teixeira - Eu faço História. Eu não sou Madame Beatriz.*** Pode haver um fato novo que vá modificar inteiramente a estrutura social da comunidade. Eu sou do tempo em que Camaçari era fazenda do Sr. Carlos Costa Pinto. Hoje, é o Pólo Petroquímico. Então você não diria a ele que haveria essa mudança, que viria uma petroquímica a ocupar a fazenda dele, pois uma petroquímica em 1930 era uma coisa impensável ... Não estava na cabeça de ninguém. Então, eu não posso dizer o que vai acontecer na cidade de Salvador no ano de 2100. Não tenho a menor idéia do que pode acontecer. Pode aparecer um fato novo que vai modificar inteiramente a estrutura social, a estrutura econômica da cidade. A queda do cacau mudou inteiramente Ilhéus e Itabuna. Os homens ricos, as mulheres ricas, as meninas ricas, os bons partidos de casamento, tudo isso. Quem não casou bem naquele tempo não casa mais agora, pois não tem mais dinheiro. Tem que arranjar outro tipo de bom partido, porque o bom partido “cacaueiro” morreu.
O que eu posso dizer hoje é que Salvador está se diluindo em termos de suas lideranças. Até uns 40 ou 50 anos passados existiam pessoas, estruturas familiares, que comandavam a cidade. Observe a relação dos membros da Santa Casa de Misericórdia, da Associação Comercial e organismos desse tipo, eram mais ou menos as mesmas pessoas. Um era presidente aqui, secretário acolá, o outro era secretário acolá e presidente aqui. Eram mais ou menos umas cinqüenta pessoas que adminsitravam a cidade. Prefeito, vereador, esses tomavam recado pra dar. Hoje você já não tem mais isso. Eu sou irmão da Santa Casa de Misericórdia. Meu avô jamais seria, coitado! Onde é que ele ia ser irmão da Santa Casa de Misericórdia? Ele era empregado do Cemitério do Campo Santo e a função dele era verificar se estavam enterrando os defuntos direito – então as coisas mudam. Não se pode prever o que pode acontecer com o neto do atual presidente, ou secretário de um organismo desses. Meu bisneto pode ser garimpeiro e pode ser industrial, eu não sei. Deus sabe como é que a cidade vai evoluir...

 

VeraCidade - Como é que o senhor concebe o processo histórico? 

 

Cid Teixeira - Uma dinâmica imprevisível.

 

VeraCidade - Weberianamente falando? 

 

Cid Teixeira - Weberianamente falando, exatamente. Uma previsão absolutamente impossível de ser feita. Ao morar numa cidade como Salvador, você não tem nenhuma segurança pra dizer que seu filho ou seu neto vai ser o entrevistante de alguém. Ele pode ser um entrevistado muito mais importante do que eu ou pode não ter nem condições pra ser o entrevistador. Depende do andamento da carruagem, que é uma coisa que só adivinhação pode resultar.

 

VeraCidade - Então a história não tem um telos

 

Cid Teixeira - Não tem, não tem! Você não pode estabelecer uma previsão a respeito de um morador da cidade de Salvador. Eu conheço pessoas que hoje são... não direi ricas, mas razoavelmente bem situadas economicamente na cidade, com alguma função de liderança, cujos avós ou eram muito mais do que elas são, ou eram muito menos. É uma coisa que oscila de baixo pra cima e de cima pra baixo ininterruptamente. Pense na sua família. Pense assim: pense em você, dê um balanço interno, faça a história da sua estrutura familiar. Seu bisavô pode ter sido muito rico, um líder ou pode não ter sido coisa nenhuma, pode ter sido um mero caixeiro de uma venda de subúrbio. A vida mudou pra todo mundo.

 

 

___________________________________

*Historiador da Bahia, Professor da Universidade Federal da Bahia e Membro da Academia de Letras da Bahia.
**Gomes Caldeira foi herói da guerra de Independência na Bahia, tendo sido assassinado em 1824 por uma topa rebelada.
***Famosa cartomante que até a década de setenta no século XX, trabalhava no bairro de Brotas na Rua Frederico Costa (próximo a Ladeira do Pepino).
 
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente - SEDHAM
Av. Vale dos Barris, nº 125, Barris - Salvador/Ba CEP: 40.070-055
Tel.:  (71) 2201-8400 - Fax.: (71) 3328-8465