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Memória das Águas da Cidade de São Paulo*

Maria Alice Nelli Machado**
Sonia Regina Ribeiro de Carvalho***
 

Uma das maiores transformações ocorridas no último século foi a do envelhecimento populacional. A expectativa de vida da população se alterou significativamente, provocando grande mudança na estrutura demográfica dos países. Existe uma população envelhecida, nas cidades e no campo, que foi testemunha das transformações sofridas pelo meio ambiente.

A memória da natureza, de métodos de agricultura que não agrediam o meio ambiente, das matas, dos rios, dos córregos na cidade e nos campos é guardada pelos idosos. Estes tinham, antigamente, um lugar privilegiado na comunidade e na família pela sua experiência e por serem guardiões da tradição e da história.

Hoje, a concepção da velhice, do papel e do lugar social reservado aos idosos pauta-se por conceitos que se relacionam diretamente à posição que esses cidadãos ocupam no processo produtivo e no mundo do trabalho. Estar fora do sistema produtivo e do mundo do trabalho define quase inteiramente o “ser velho."  De um lado, por estarem fora do sistema produtivo são vistos como pessoas sem importância social, impedidos de participar de várias dimensões da vida social. De outro lado, muitas vezes assumem um papel suplementar na família, contribuindo com a sua sustentação financeira e no cuidado da casa e das crianças.

Este segmento vem, a despeito do lugar que lhes reserva a sociedade, encontrando formas de afirmar sua identidade e colocar seus conhecimentos a serviço da comunidade. Muitos deles estão organizados e participando de várias frentes de luta pela garantia de direitos sociais e de cidadania. Dentre as várias demandas apresentadas por eles, está a de preservação da natureza e proteção do meio ambiente, pois afirmam que o homem está destruindo o seu meio natural e colocando em risco a vida e a saúde de todos.

A memória destes velhos pode ajudar a recuperar parte da história dos recursos naturais, da maneira como os homens se relacionavam com a natureza, além de recuperar parte da identidade da cidade e dos próprios idosos. Essa geração pode transmitir para outras gerações a sua experiência no trato com o meio ambiente e desenvolver, em conjunto com outros atores, propostas de ação que levem a práticas ambientais sustentáveis.
 

 História e Memória

“O senhor, mire, veja: o mais importante e bonito do mundo é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas, mas que elas vão sempre mudando”(ROSA, 1972). Guimarães Rosa traz pela boca de Riobaldo, a noção clara da consciência do eterno movimento da existência que está sempre se fazendo, numa incessante experiência da contingência, em que presente e passado são pontas de uma mesma história. Velhice e juventude são um continuum, o tempo vivido é o tempo do sujeito que experimenta e que compreende que o presente é o futuro do passado e é também o presente do futuro.

O dito roseano revela a dimensão histórica de nossa vida na qual o sujeito vai sendo, enquanto vai realizando no seu cotidiano a aventura da existência. Não somos seres prontos e por isso sem história, mas vamos construindo a cada passo nossa humanidade, vamos sendo homens. Assim, nossa experiência existencial vai se tornando parte de nossa memória e a cada passo do caminho essa memória vai se tornando um elemento fundamental para o resgate da nossa identidade.

A velhice é o momento da vida humana em que a memória torna-se o elo de ligação entre o presente, que cada dia é mais distante do idoso porque estranho a ele e o passado no qual é possível reconstruir-se sua identidade. É no passado que o sujeito se reconhece e se compreende e é nele que busca significado para sua vida.

Bobbio(1997) em sua obra O Tempo da Memória diz: “O mundo dos velhos, de todos os velhos, é, de modo mais ou menos intenso, o mundo da memória. Dizemos: somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos. E eu acrescentaria: somos aquilo que lembramos. Na rememoração reencontramos a nós mesmos e a nossa identidade, não obstante os muitos anos transcorridos, os mil fatos vividos”.

Rememorar o vivido é reencontrá-lo não exatamente como foi, mas resignificado pelas experiências, reconstruído e repensado pelas imagens e idéias de hoje. Os dados da memória não correspondem exatamente aos fatos vividos, mas são eles representações significativas destes fatos, porque nós também não somos os mesmos, nossa percepção se alterou como também nossas idéias e os significados que atribuímos à realidade. Nessa rememoração do passado o velho encontra-se consigo próprio, com aquele que foi e com aquele que é agora, realizando a síntese do vivido, dando sentido a sua história.

O instrumento socializador da memória é a linguagem e assim, além de lembrar, o velho sempre teve o papel de transmitir a experiência, preservar a tradição, contar estórias. No relato dos fatos passados encontra-se o conhecimento acumulado que era transmitido, e o velho era a memória da família, do seu grupo social, da comunidade.

Na sociedade moderna, o papel de depositário do conhecimento e da tradição vai desaparecendo, pois este era o papel do narrador, daquele que por meio da palavra comunicava a experiência vivida e muitas vezes o maravilhoso, com os contos e estórias. Hoje, com a comunidade de informação vai desaparecendo o ouvinte e o narrador. As estórias que eram fonte de ensinamentos, de conselhos, espaço para a troca de experiência, vão se afastando de nosso cotidiano.

O narrador é aquele que ao contar uma estória se conta também naqueles fatos, ensina e aprende de si, deixa sempre um espaço aberto para a interpretação do ouvinte, que também se apreende na narrativa. Diz Benjamin: “O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência de seus ouvintes." (BENJAMIN, 1994).

Retomar a narrativa é a possibilidade de preservar o saber oral que os velhos detinham e que se expressava nas conversas, nos contos, onde o verdadeiro e a fantasia se mesclavam para tornar mais compreensível o sentido da existência.

Contar-ouvir estórias é permitir que o maravilhoso se instale em nosso meio e nos traga o encantamento da existência, que é tecida nas tramas da memória-história-estória. De novo Guimarães Rosa: “Conto o que fui e vi, no levantar do dia. Auroras. Cerro. O senhor vê. Contei tudo. Agora estou aqui quase barranqueiro. Para a velhice vou, com ordem e trabalho. Sei de mim? Cumpro.”(ROSA, 1972).
 

A Oficina

Os encontros de memória foram planejados de forma a propiciar a rememoração de histórias e experiências com a água na infância dos idosos em suas comunidades de origem, o resgate da história dos rios da cidade de São Paulo por meio de lembranças vividas e a construção coletiva de um texto que contivesse os principais elementos trazidos ao grupo.

O conjunto de informações produzidas subsidiará posteriores encontros dos idosos com crianças, nos quais as memórias contadas serão socializadas pelos protagonistas, possibilitando que as crianças conheçam o relato da história dos rios da cidade, narradas pelas testemunhas vivas de outra geografia.

A oficina começou com uma breve reflexão sobre a memória e sua importância, enfatizando que fazer memória, relembrar o passado é dar sentido a nossa vida, a nossa identidade. Que o narrador ao contar uma história ele se conta, diz de si, quando ensina, aprende.

Os relatos trouxeram, em meio a tantas lembranças, experiências envolvendo as crianças, a família e a comunidade com os rios, os poços, as fontes de água. A água fazia parte natural do cotidiano. Os rios serviam para pescar, para lavar roupas, para brincar, lugar de encontro e de convivência. As nascentes, os poços, eram sempre lembrados como lugares onde se encontrava água límpida, fria, pura, rodeadas de matas preservadas, de bosques à margem dos riachos. Tempo de muitas frutas, de boa água, de alegria e inocência!

As falas dos participantes registraram momentos, lembranças mais significativas dos tempos da infância, adolescência e depois de suas vidas de adultos na cidade de S. Paulo. Durante os relatos as pessoas se emocionavam com as lembranças e por muitos momentos todo o grupo era envolvido pela saudade, pela ternura, pela alegria ou tristeza, sentimentos que com muita força ocupavam aquele espaço. O vivido tomava conta de todos e o que se percebia era que haviam conhecido um tempo de liberdade e felicidade no contato com a natureza, com a água, que estava hoje perdido para sempre.
 

Os Relatos

Nestes primeiros relatos, o universo rural ou de pequenos bairros se sobrepõe ao universo urbano da grande metrópole. São momentos da infância e adolescência destes personagens que têm mais de 60 anos, portanto nos anos 20, 30 e 40 do século passado.

Esse era um período em que nosso país tinha a maior parte da população vivendo no campo, com uma economia fundamentalmente agrícola. O campo, ou os bairros sem asfalto, com poucas casas e com muito mato, os rios cristalinos, eram o cenário aonde as recordações iam se desenrolando.

O universo infantil aparecia povoado de brincadeiras envolvendo crianças da família e da vizinhança, sempre acompanhadas umas das outras e fazendo “traquinagens”. Cada qual lembrava desses momentos de corre-corre, de pequena “fuga” dos pais, de perigos que não conheciam, de andanças pelas matas e rios, de banhos gostosos nas águas sempre límpidas e frias, pescando, catando frutas, “sendo felizes”, como diziam!

Por outro lado aparece no geral, a figura dos pais sempre suaves e compreensivos, deixando-os em liberdade, ”não havia perigo” e os meninos e meninas brincavam juntos sem problemas, pois era um tempo de “inocência”.

Outro aspecto da sociabilidade que surge é a relação das famílias entre si, das mães que iam lavar roupas juntas no rio, por exemplo, e que levavam consigo as crianças e se revezavam no trabalho, no cuidado e nas brincadeiras com os pequenos. E nesses momentos as mulheres partilhavam suas vidas, riam e contavam seus casos, “escondidas” dos homens, tudo sob o olhar encantado das crianças.

As lembranças particulares iam se somando e construindo uma teia com a lembrança coletiva. A experiência de cada um era reconhecida pelos outros como parte de suas próprias lembranças. Aos poucos, com a partilha, ia se criando um clima afetivo que envolvia a todos.  As identidades iam se firmando e o sentido da vida aparecia claramente. Muitos dali se conheciam de antes, mas agora se reconheciam, resignificados pelas experiências vividas e delicadamente partilhadas.

Zulmira: Paranaense, mudou-se para São Paulo há 49 anos e mora no Bairro da Liberdade.
"Morava no interior de São Paulo, tinha muito verde, tinha um açude aonde eu ia com meus irmãos pescar peixes de peneira, brincar no açude com meus irmãos, escondido da mãe."

Francisca: Nasceu em Cravinhos, mudou-se para São Paulo há 37 anos e mora em Cerqueira César.
"Eu fiquei entre o contado e o vivido. Vou trazer o vivido porque o contado foi através da avó com quem vivi 30 anos de minha vida. Duas lembranças foram marcantes: a água do poço que você não enxergava. Ela saía de lá tão pura, tão cristalina, gelada e puríssima. E a outra lembrança é da mina de água. O poço e a mina são duas coisas totalmente diferentes. Enquanto o poço era profundo, a mina era na flor do chão. De repente, o cenário mudava. A gente descia uma estrada de terra lá para baixo e entrávamos na colônia por um atalho, isso era no interior de São Paulo, próximo de Cravinhos. Era um lugar onde se plantava café, a terra era roxa, o terreno da mina formava dunas, morrinhos e, do meio, não sei de onde vinha, brotava água, também limpinha."

Alice: Nasceu no interior de São Paulo, mora na região Sul há mais de 40 anos.
"Vou falar da beira do rio Tietê que enchia de água e a gente não atravessava da nossa região para a cidade. Eu morava entre Jundiapeba e Suzano e chamava bairro do Rio Abaixo. A plantação dos lavradores era cheia de água porque estávamos bem próximo da nascente do rio Tietê. Quando acabava a enchente, a água baixava e próximo da olaria ficava uns laguinhos cheios de peixinhos. Nós nos divertíamos muito e com uma peneira mariscava filhotes de traíra. Quando eu era um pouco maior, uma vez, passando pela ponte do rio Tietê vimos uma cena muito triste: todos os peixes boiando mortos com a barriga para cima por causa de uma indústria instalada no município de Mogi das Cruzes, à beira do rio Tietê. Isso era por volta de 1952, 1953."

Olga: Chilena, mudou-se para São Paulo há 45 anos, mora no bairro do Ipiranga.
"Por volta de 1945, morávamos em uma vila militar, meu pai era militar. Eu tinha mais ou menos 10 anos. À tarde nossos pais iam dormir e as crianças iam brincar no rio Aconcágua, que nasce na cordilheira dos Andes. Aonde nós brincávamos tinha uma água clara, fresca, geladinha. Nesse tempo é perigoso, pois está derretendo a neve da cordilheira e a água vem com muita força. Nossos pais falavam: “Não vão para o rio. Vão para qualquer lugar, menos para o rio”. Mas não adiantava. Antes de chegar ao rio, tinham os campos com pêssegos, ameixas, mas nem ligávamos, a gente queria chegar ao rio. Essa é uma lembrança muito gostosa. As crianças se juntavam e os pais não se incomodavam porque naquele tempo a gente era inocente, não tinha a maldade que tem hoje, a gente segurava nas mãos uns dos outros, corria e brincava. O que mais aflora para mim é essa inocência que hoje as crianças estão perdendo."

Kaiser: Paulistano, 46 anos e reside na Vila Brasilândia.
"Lembro que até uns 12 anos mudei muito de bairro, aproximadamente, umas cinco vezes. O que mais me marcou foi quando eu tinha aproximadamente uns sete anos e nesse local foi marcante porque eu convivia com minha mãe, minha tia avó e minha bisavó. Meu pai separou de minha mãe quando eu tinha dois anos e fui criado por mulheres, sou filho único. Eu era muito traquino, eu subia nas árvores, imitava os poços, fazia pocinhos... Em frente havia um sítio com todos os tipos de frutas e existia ali uma casa onde tinha uma mina d´água. Lembro o frescor das sombras, os peixes, o banho de chuva. Naquela época, o bairro, as ruas não eram perigosas, sumia de casa e só voltava à tarde. Era na Vila Brasilândia”.

Roberto: Possui o nome samurai de Katsuhiko, nasceu em Iguape, mudou-se para São Paulo há 58 anos e reside na Mooca.
"Eu não preciso fechar os olhos para lembrar, com os olhos abertos eu vislumbro bem o que aconteceu. O que ficou marcado quando eu tinha cerca de 13 anos é que eu era uma criança solitária. O meu maior prazer era sair de manhã cedo quando estava de folga, não precisava trabalhar e ficava o dia todo no meio do mato, mata virgem mesmo. Tinham muitas frutas. Uma fruta que dava em uma árvore grande feito cipó, a fruta era pequena, chamava cipotá, era uma variedade do abio, muito doce. Tinha outra fruta chamada brejaúva, parecia coco pequeno, tinha que cortar e tirar o miolinho para comer. O mais interessante era a dificuldade para colher a fruta. Para começar, eu andava descalço e de calça curta. Tinha muito espinho, com mais ou menos sete centímetros de comprimento que quebrava na pele da gente, inflamava e dava muito trabalho para tirar. Passava o dia inteiro no mato, só voltava para casa à noite. Isso não me sai da cabeça, lembro quase  toda hora. Tinha muita cobra d’água... Apesar de ser um menino solitário, nunca me senti sozinho."

Ficou emocionado ao fazer o relato e todo grupo também!

Orlando: Paulistano, mora na zona leste há 62 anos.
"Vou falar sobre o rio Tietê, na altura da Penha. Quando garoto, no final de semana íamos à casa dos tios na baixada do Cangaíba, onde o rio fazia um “S”. Tinham várias lagoas. Quando o rio enchia, não sabíamos onde estava o rio. Ele transbordava, as lagoas retinham a água e, quando baixava, íamos pescar, saíamos para onde estavam as olarias e os grandes portos de areia. Os transportes de areia eram feitos por barco, a maior fábrica de barco ficava na Rua Tuiuti com a Ulisses Cruz. No domingo, os casais ficavam na beira do rio, alugavam os barcos, faziam passeio, piquenique e a garotada ia nadar. Já em 1952, não dava mais. Um círculo, uma bandeira, dois remos e a âncora é o desenho que deu origem ao símbolo do Corinthians. Depois o Corinthians ocupou a margem do Tietê, tinha o clube de remo que disputava regatas e tinha a bandeira como símbolo. Onde eu moro existia a maior mata dentro de São Paulo, ficava na Regente Feijó, tinha água pura e cristalina. Um desgraçado de um governador pôs a mata abaixo, o pessoal do Meio Ambiente foi lá e pediu pelo amor de Deus para não tirar porque onde tem mata tem água embaixo. Ali havia o maior lençol de água da cidade de São Paulo. Hoje é conhecido como Jardim Anália Franco, no Tatuapé. O senhor Laudo Natel desgraçadamente acabou com tudo."

Ângela Maria: Paulistana, 74 anos e mora em Pinheiros.
"Eu estou até deprimida, pois a minha infância foi muito dominada. Não podia isso, não podia aquilo, não podia nada. Educação rigorosa, aquela coisa, mas eu sempre fui fora de esquadro, fazia tudo atrapalhado. Lembro-me demais do jardim de infância da escola, das freiras... Tinha um lugar que a água enchia, ficava aquele monte de água e as freiras diziam: ‘não pode, não pode’ e aí eu ia e fazia. Tirava meu sapato e minha meia, entrava naquela água e quando a freira chegava, eu estava toda molhada, uma verdadeira bagunça. Eu era contra as regras e ficava de castigo. Os professores me botavam para fora da sala e eu ficava no corredor chamando as outras crianças e, quando as freiras saíam, nós corríamos, entrava na água e ficava naquela bagunça. O que eu me lembro é isso. Isso foi em Santos."

A alegria da dona Ângela era brincar com as poças d’água, isso era transgressão para ela.

Terezinha: Cearense, mudou-se para São Paulo há 46 anos e mora na região de Pirituba.
"Como falei, até chorei porque me vieram momentos muito importantes da minha vida quando eu era criança no Ceará. No norte, as mulheres vão lavar roupa no rio e levam as crianças, juntavam muitas mulheres, minha mãe, minha avó e outras. As trouxas de roupas a gente colocava na cabeça. O nordestino costuma carregar muitas coisas na cabeça, tem equilíbrio. Até hoje eu carrego coisas na cabeça. Então, aquelas mães levavam os filhos para o rio, não deixavam em casa e ficavam o dia inteiro lavando roupa. Levavam rapadura, farinha, queijo, frutas e garrafas brancas com um pouco de farinha para as crianças pegarem piabinhas que entravam pela boca da garrafa. Deixavam a gente num local onde a água era rasa, as mulheres ficavam sentadas na pedra lavando roupa e todo mundo ficava sem roupa porque era um local fechado. Não tinha acesso para os homens e eles sabiam que onde as mulheres lavavam a roupa, não passavam por perto. Aquele que atrevesse seria preso, pelo menos na época. Depois que lavavam a roupa, as mulheres que tinham terminado, iam catar frutas na mata, em Guaraciaba do Norte. Depois de colocar a roupa para secar, iam pescar para levar peixe para casa. Levavam o peixe limpo e quando chegávamos em casa tínhamos janta. E, os homens na roça, capinando, plantando, colhendo, cuidando dos animais. Isso me emocionou porque eu vi minha vó, minha mãe, meus colegas que talvez não existam mais. Teve outro momento na minha adolescência, em outra cidade chamada São Benedito, de onde eu saí para vir para São Paulo. Então, a gente ia tomar banho nos rios, nos açudes... As moças iam tomar banho porque era um lazer a gente ir tomar banho nos rios e no domingo era o encontro dos namorados. Nessa época, não tinha água encanada, nós carregávamos a água do nosso consumo num balde, numa lata... Isso nas cacimbas que eram feitas no brejo, os poços estavam a quilômetros de distância de casa, a água era carregada no lombo do jegue. Quando eu tomei meu primeiro banho de chuveiro, como eu pulava, gritava naquele negócio! Momentos ricos de contato e partilha da vida que se perderam na sociedade urbana moderna."

Maria Antonia: Nasceu em Caraguatatuba, mudou-se para São Paulo há 67 anos e mora na Zona Oeste.
"Sou de Caraguatatuba e vou contar de minha infância. É uma história muito triste porque minha mãe morreu quando eu tinha um ano e meio. Até os seis anos fui criada pela minha avó, depois fiquei com minha madrasta que era muito ruim, judiava muito de mim e de minha irmã. Ela judiava muito, batia muito, eu era raquítica de tudo e ela fazia a gente ir para o rio lavar roupa. Meu pai era pescador, trazia o peixe e ela fazia a gente ir para o rio limpar o peixe, depois trazer para casa e cozinhar. Trazia água no pote, na cabeça, eu fui sofrida demais. Quando eu vim pra São Paulo, eu tinha 12 anos, fui criada com uma família chamada Calazans e fui muito maltratada. Eu não tive nem infância nem mocidade, eu não tive quase nada nessa vida e no casamento também fui muito infeliz. Mas, agora sou feliz, me considero feliz porque eu venci tudo. Vim para São Paulo num caminhão de banana, de Caraguatatuba para cá. Viemos eu e minha irmã. Ela tinha 14 anos e viemos trabalhar. Trabalhávamos a troco de comida e roupa. Hoje sou feliz porque tenho cinco filhos, 10 netos e 6 bisnetos."

Ruth: Boliviana, mudou-se para São Paulo há 40 anos e mora em Pirituba.
"No tempo da minha infância, quando meu pai era vivo costumávamos ir para a chácara. Tinha bastante bosque com frutas, cenouras, batatas e o que mais me empolgava era passar pelos rios e ver as águas bem límpidas. Eu gostava de pegar pedrinhas lá. Nós éramos cinco filhos e um dia ao voltarmos para casa, minha irmã pegou um ninho de passarinho com uns filhotes. Como não tinha onde colocar o ninho, colocamos embaixo do meu chapéu. Meu pai percebeu que alguma coisinha subia e descia na minha cabeça e perguntou: “o que você tem na cabeça?”E eu respondi: “nada pai, nada pai”. Ele me disse: “então, mostra”. E nós tínhamos um respeito pelo pai e quando ele tirou o chapéu da minha cabeça achou os filhotes. Pediu que fôssemos devolver, mas como? Já tínhamos andando muito, deixamos os passarinhos em qualquer lugar, foi uma época que era feliz e não sabia. Isso era na Bolívia."

Ester: Boliviana, mudou-se para São Paulo há 28 e mora em Pirituba.
"Éramos cinco irmãos e morávamos juntos com minha avó. Eu gostava muito de brincar com boneca, cozinhar, lembro-me sempre da escola. Era uma infância muito boa na Bolívia."

Isabel: Baiana, mudou-se para São Paulo há 57 anos e mora em Sapopemba.
"Lembrei pouco, não tive infância nenhuma. Quando minha mãe morreu, eu tinha 12 anos. Vivi na casa dos outros, sofri bastante, meu pai pegava a gente e levava para roça, para plantar, colher e fazer rapadura no engenho. Só isso que eu tenho a contar."

Ao final das falas, uma das participantes destacou os elementos comuns presentes nos relatos: o açude, poço, mina d’água, rio, lagoas, córregos, matas, lagoas aterradas, lavadeiras, crianças brincando, banho no rio, pescarias, enchentes, poluição, morte no rio Tietê, ação malévola do homem, fim dos campos de várzea.

O segundo encontro teve como foco as lembranças dos rios e córregos da cidade de São Paulo. Todos buscavam rememorar a cidade nos idos de sua juventude, os rios e córregos mais conhecidos, surgiam cheios de histórias. Lugares que conhecemos, hoje, são totalmente diferentes dos trazidos nos relatos. Uma cidade provinciana, sem perigos, com brincadeiras de rua, solidariedade entre vizinhos.

A trajetória da ocupação da cidade foi sendo descortinada por meio das lembranças. As pontes de madeira foram sendo substituídas pelas pontes de ferro e de concreto, as pinguelas substituídas por pontes, a ocupação dos fundos de vale e áreas de várzea levaram ao desaparecimento dos campos de futebol e das brincadeiras nessas áreas. As chácaras que existiam em vários bairros, com cultivo de verduras, frutas e criação de animais deram lugar as casas e os edifícios. Rios que corriam a céu aberto foram canalizados, seus cursos modificados em muitos pontos As águas que eram limpas, usadas para pescar e para praticar esportes, pouco a pouco se tornaram poluídas e de suas margens foram desaparecendo o burburinho das pessoas que, nas tardes de domingo, vinham passear e nadar. Dão conta também do nascimento das indústrias, do desmatamento de muitas áreas verdes, de algumas “florestas” derrubadas, do assoreamento dos rios e, finalmente, das enchentes. São testemunhas vivas do quanto a ação do homem transformou as paisagens, produzindo uma cidade desumana e uma sociedade em que a solidariedade, a amizade e o respeito vão desaparecendo e se impondo um novo estilo de vida. Os individualismos de hoje, o consumo exacerbado contrastam com a vida simples, pobre e até mais cheia de dignidade.

João Batista: sem informações.
"A gente aprendeu a escovar os dentes com canequinha de água, tirava água do poço, tomava banho no rio, no riacho do Ipiranga e pescava, caçava rã, pegava preá, saracura. Hoje, um desses trechos é o Plaza Sul, aquele shopping que tem na Água Funda. Nesse trecho do Plaza Sul, tinha uma represa onde passava a boiada que vinha do Ipiranga, parava lá para descansar, beber água e se chamava Rio da Boiada. Subia com a boiada e passava no Jabaquara para ir ao Matadouro da Vila Clementino. Hoje, tem uma cinemateca, uma espécie de museu. Meu pai, naquele tempo, nos anos 30, teve uma grande dificuldade financeira e ia para o matadouro, pegava tripas, coração, fígado, tudo que era resto de boi. Eles davam esses miúdos para os chamados ‘tripeiros’ que iam vender de porta em porta essas tripas, aquilo que não servia, jogavam no Córrego do Sapateiro, que passa dentro do Parque do Ibirapuera. Neste córrego também se pescava porque tinha muito peixe até os anos 50. Ele atravessava o Ibirapuera, passava pela Vila Olímpia e ia descarregar suas águas no rio Pinheiros. Na Avenida Juscelino Kubstichek tinha muito cogumelo, o pessoal pegava cogumelo de sacola (naquele tempo não se falava cogumelo, era fungo). Lá no Bosque da Saúde, eu morava no Bosque da Saúde com as minhas tias, a molecada saía de madrugada, cada um tinha uma marca e marcava o fungo. Eu era o menorzinho da turma, ia lá pegava os fungos de todo mundo e apanhava deles."

Ruth: Boliviana, mudou-se para São Paulo há 40 anos e mora em Pirituba.
"Em 1950, eu lembro que na minha casa não tinha torneira. Nós pegávamos água de balde de uma bica, água bem gostosa e limpinha. A gente tinha um tambor que enchia de água para tomar banho, lavar roupa, lavar louça, enfim. Na frente da minha casa passava um rio que era muito sujo porque tinha fábricas por perto, saía das montanhas aquela água suja e tinha um lugar, tipo um esgoto, que eles abriam e se entupiam. De lá, saía uns panos, como se fossem aqueles paninhos de lavar louça que se chamava tucuio. O pessoal mais pobre ia lá, logo pela manhã,  pegava todos os panos e nós ficávamos olhando. Eu voltei para minha infância. Eu era feliz e não sabia."

Francisca: Nasceu em Cravinhos, mudou-se para São Paulo há 37 anos e mora em Cerqueira César.
"Lembro do Brás, do Parque Dom Pedro e que para vir para a cidade a gente atravessava uma ponte, era de bonde, o rio que tinha ali no parque Dom Pedro era o Tamanduateí. Do Brás para a cidade, nós atravessávamos o Tietê, aquela ponte ficava obstruída com muita chuva, era a enchente. O que eu me lembro e tenho muita vontade que fosse restaurado era o Parque Dom Pedro. Era uma coisa, assim, linda, que foi completamente abandonada pelo poder público na época em que o importante era fazer a cidade nova, era construir, botar asfalto e concreto. Minha infância foi marcada também pela construção da Avenida São João, dos prédios que subiam. Lembro que o Parque Dom Pedro era uma ilha de verde, tinha um lugar chamado Parque Xangai dentro do Parque Dom Pedro, que o bandido da luz vermelha andou matando gente por lá e daquelas árvores... Depois fui morar no interior e quando voltei para São Paulo, o parque não existia mais."

Miguel: Pernambucano, mudou-se para São Paulo há 58 anos e mora na Liberdade.
"Cheguei em São Paulo em 1947. Vim do norte e o que eu mais admirava era que, onde hoje é a Avenida 23 de maio, era uma vala cheia de bananeira, capim, tinha um córrego, o Córrego de Itororó. Depois eles construíram o Hospital Beneficência Portuguesa onde passava o córrego. Esse córrego ligava o largo Anhangabaú. Depois fizeram aquela bela Avenida 23 de maio, quem é que sabe disso? Passava por cima desse córrego. Só sabe quem viu. Na altura da Beneficência Portuguesa tinha uma pinguela de madeira que passava para o outro lado, para a Avenida Liberdade. Era a novidade."

Olga: Chilena, mudou-se para São Paulo há 45 anos, mora no bairro do Ipiranga.
"Lembrança de 1960. Fui morar na Bela Vista, na Brigadeiro Luis Antonio, próximo à Federação Paulista de Futebol. Atrás, tinha um campo de futebol, onde hoje tem o viaduto Condessa de São Joaquim. Embaixo passava o Córrego Itororó, tinha a Favela do Vergueiro e, hoje em dia, o que resta daquele tempo é a Vila Itororó que este governo vai demolir. Embaixo está a beira da Avenida 23 de maio e encima está a Rua Arthur Prado. Você chega naquela Vila e vê os leões sentados, tem uma grande escadaria. Tem o nome de Córrego Itororó. O córrego era bonito, não era água suja, não. A gente pulava o córrego passando por uma madeira, descíamos para a Liberdade, para Barão de Iguape, onde tinha uma feira muito grande no domingo e à noite a gente jogava naquele campo de futebol que tinha ali embaixo, era muito bonito. E a gente brincava de escorregar de cima até lá embaixo. Fazíamos um tobogã no barranco de terra. Era muito gostoso! Aos domingos íamos à praça João Mendes pegar aquele bondinho aberto e a gente descia para o Ibirapuera, onde tinham também os córregos e muito mato. Era diferente do Parque Ibirapuera de hoje, não tinha aquela ponte elevada, era tudo de madeira improvisada. Caía a madeira e quem passava botava outra no lugar... era tudo muito interessante! Lembro também do Anhangabaú. Quando eu cheguei aqui era um morro com um buraco embaixo. O que eu mais lembro é que no ano de 1961, 62 começou o carnaval no Anhangabaú, saia muita água  quando começava a chover, caía muita água e o povo dizia: ‘também o que vocês querem? o córrego tá embaixo!’. Ele vem lá da Nove de Julho. Quando chove fica tudo inundado porque embaixo também tem um córrego. No Anhangabaú, tem um túnel que fica todo alagado e mudou de nome. Eu lembro que a gente vinha ver a enchente no Anhagabaú, era o buraco do Ademar."

Miguel: Pernambucano, mudou-se para São Paulo há 58 anos e mora na Liberdade.
"Outra coisa. Ali ao lado, onde era o buraco do Ademar, quando eu cheguei aqui em São Paulo, em 1947, naquela extensão toda, eu lembro que tinham três prédios grandes, não sei quantos andares e estavam demolindo justamente para fazer o largo. Eu tenho muita lembrança porque ia lá pegar material."

Olga: Chilena, mudou-se para São Paulo há 45 anos, mora no bairro do Ipiranga.
"Do Parque Dom Pedro, eu me lembro. A gente trabalhava na Rua Direita, quando enchia, a gente corria para ver. Enchia tanto de água que para ir para o outro lado subíamos numa jamanta. Para ir para o Brás, eles colocavam esse carro e passávamos em cima. Não existia aquela ponte da Pacheco Chaves que une a Mooca com o Ipiranga, próximo à Cisplatina e também passávamos naquele carro para o outro lado. O carro chamava-se jamanta."

Como eles dizem: “Éramos felizes e não sabíamos!”.

Alice: Nasceu no interior de São Paulo, mora na região Sul há mais de 40 anos.
"Vou falar da minha região lá na baixada do rio Pinheiros, onde tem a Avenida João Dias. Lá, também, era um córrego muito bonito aonde a turma vinha fazer as festas. Inclusive, por lá passavam as boiadas e, do outro lado, a Represa do Guarapiranga que era muito bonita. Por lá, pastavam os gados, a gente passeava de carro de boi. Tem também a Represa Billings do lado de Grajaú onde tinham as barragens e as comportas abriam para passar os navios de Santos para cá. Hoje, para lá do bairro Evangelista de Souza, lá para o lado do Capivari Monos, naquele meio de mato ainda existe água limpa e geladinha."

João Batista: sem informações.
"Lá na Represa de Guarapiranga que ela está falando, nos anos 30 até perto dos 50, tinham uns barcos muito grandes que se chamavam Duque de Caxias. A gente viajava naqueles barcos por dentro da represa e íamos para a praia de Interlagos, praia Azul, praia Vermelha, Riviera Paulista e voltávamos pelo paredão."

Roberto: Possui o nome samurai de Katsuhiko, nasceu em Iguape, mudou-se para São Paulo há 58 anos e reside na Mooca.
"Eu era do interior e vinha para a cidade como turista do que qualquer outra coisa. Quando vinha para a cidade, meu maior prazer era ficar no Viaduto do Chá e olhar toda a cidade. Achava maravilhoso. Outra coisa que lembro muito é que eu queria conhecer o rio Tietê. Conhecia no mapa, das escolas e dizia: “eu quero conhecer o rio Tietê”. Na primeira oportunidade, fiz questão de conhecer. Fui ali, embaixo da Ponte da Bandeira. Tinha bastante peixe, só que os peixes de lá não eram normais, pareciam doentes. Isso foi no ano de 1951. De tudo isso, o que mais me chocou e ficou bem gravado foi a idéia de ter que comprar água para beber. Eu achava isso um absurdo... agora até já me acostumei."

Terezinha: Cearense, mudou-se para São Paulo há 46 anos e mora na região de Pirituba.
"Quando cheguei a São Paulo em 1959, muito próximo à minha casa tinha duas lagoas. Numa das lagoas, chamada Lagoa da Fábrica de Papelão, que era muito grande, morreu muita gente afogada, principalmente a garotada que ia tomar banho. De 1959 até 1964, lembro que essa lagoa existia. Próximo, tinha uma fábrica de papelão que foi tomando conta da lagoa com seu material, com sua poluição e foi aterrando a lagoa até que ela acabou. Porém, lá existe um córrego a céu aberto, onde só uma parte  é canalizado. Esse córrego desemboca no rio Tietê. Quando chove muito tem enchente porque o córrego não dá vazão, os canos não suportam a quantidade de água. A outra lagoa, onde hoje é um belo de um parque, também foi aterrada. Eu a conheci com barcos e era um lugar de lazer das pessoas. Ali, aconteceu certa vez um acidente de barco onde morreram várias pessoas. Um cabo da polícia militar, na época, salvou duas pessoas, porém morreu afogado. Ele chamava-se Adão Pereira e deu o nome a uma rua lá do bairro. Essa lagoa era conhecida como Lagoa dos Bois porque os bois que chegavam de trem eram levados para beber água lá. Lembro também que, hoje, onde é o Hospital de Pirituba era um curral onde ficava o gado. Tem também lá em Pirituba, a Estrada da Boiada, pois os bois vinham de outros lugares beber água nessa lagoa. Hoje, é o Parque Fernando Gaspari. São, portanto, duas lagoas que foram aterradas e viraram parque. Por isso, quando chove, ‘dana’ tudo, pois as águas que vêm da cabeceira do Cantagalo, da Vila Mirante dão enchente e a população sofre muito."

Maria Antonia: Nasceu em Caraguatatuba, mudou-se para São Paulo há 67 anos e mora na Zona Oeste.
"Cheguei aqui com 14 anos, sou de 1926. Ao chegar a São Paulo, fui trabalhar numa casa de família em Moema, próximo à igreja de Moema. Ia muito às chácaras comprar verduras. Lá, a rua era muito estreitinha, as casas eram muito poucas, tinham chácaras de verduras, de flores, tinha cabra, tinha cavalo, tinha uma porção de animais. Eu lembro que tinha um rio naquela avenida que vai para o Hospital Servidor. Acho que era o Córrego Itororó e, na véspera de natal, aconteceu um desastre com um bonde. O bonde era fechado e um senhor foi atravessar. O bonde o pegou e ele caiu no rio."

Orlando: Paulistano, mora na zona leste há 62 anos.
"Moro a 62 anos na Zona Leste. Quando garoto, lá onde eu moro tinha o maior lençol de água. Tirava água dos poços e colocava em tinas para beber durante o dia. Então, ficava bem geladinha. O pessoal que passava por lá pedia um copo d´água porque era região de chácaras, as casas eram longe. Depois disso, teve o desmatamento. Tinha o Lago do Paraguaçu, a gente ia nadar e nem sabíamos que corria perigo, era no meio do mato. Nós tínhamos chácara. Então, a gente vinha para o mercado e trazia o caminhão de verdura. Quando dava enchente, o mercado inundava, as verduras ficavam todas boiando e a gente ‘tomava’ prejuízo. A gente corria para os rios tentando salvar as verduras. Depois, veio o caso das lagoas do Parque Dom Pedro. A gente achava aquilo muito bonito porque era tudo gramado e tinha aqueles fotógrafos “tripé”com seus caixotes que tiravam fotos. Tinha também o caso do rio Tamanduateí que foi canalizado. Se ouvia falar muito sobre o Anhangabaú e eu fui procurar saber porque chamava Anhangabaú. Chama-se Anhangabaú porque lá nas cabeceiras os portugueses matavam o gado e sangravam dentro do rio e os índios chamavam Anhangabaú, que significava “água podre”. Também tem o caso do rio Guaiauma. Eu tinha mais ou menos cinco ou seis anos. O pessoal que morava na beira do rio Tietê quando dava enchente subia no barco, ficava de guarda chuva até passar a enchente e depois voltar para casa de novo."

Olga: Chilena, mudou-se para São Paulo há 45 anos, mora no bairro do Ipiranga.
"Quero falar do Córrego do Ipiranga que passa pela Avenida do Estado, ali do lado da Avenida Teresa Cristina. Lembro que íamos ver o museu e, sempre que chovia, aquilo enchia de água. Não tinha muita mobilização, a gente tinha que vir a pé do museu para o centro da cidade. A gente vinha pela Rua do Lavapés. Queria saber por que a rua se chamava Lavapés, era a minha curiosidade. Um dia de chuva, existia pouco comércio nessa parte do Cambuci, a gente sentou num negócio quadrado, um tanque que agora não existe mais. Era 1961, perguntei para um homem e ele falou: “porque quando os Bandeirantes chegavam de barco até Santos, São Vicente, subiam pela Anchieta para chegar à cidade. Tinham muitas poças de água e iam lá lavar os pés. Vinham negociantes, comerciantes que lavavam os pés para poder entrar na cidade. Chamava Lavapés porque eles, os comerciantes, lavavam os pés para poder entrar na cidade. Tinha muita água nessa rua. Eu achava interessante lavar os pés aí nessa rua."

Miguel: Pernambucano, mudou-se para São Paulo há 58 anos e mora na Liberdade.
"Ele fez uma perguntinha para mim sobre o Cambuci, a Rua do Lavapés, mas ele perguntou outra coisa curiosa, porque lá tem o Morro do Piolho? Esse morro do Piolho, naquele tempo das fazendas, quando chegava a época de maio, junho dava muito carrapato e muito piolho no mato. Os escravos ficavam impregnados de piolho, então, os fazendeiros levavam lá em cima daquele morro e cortavam o cabelo ‘careca de todo mundo’, aí tocava fogo no cabelo para matar o piolho. Então ficou chamando Morro do Piolho."

Terezinha: Cearense, mudou-se para São Paulo há 46 anos e mora na região de Pirituba.
"Eu ainda lembro-me do rio Tietê, nas imediações de Casa Verde vindo até Pirituba, era um rio que as pessoas pescavam e nos finais de semana iam para a beira do rio. Isso foi 59, 60, até 62 ainda existia. Também, ali, onde era a ponte do Piqueri era uma ponte de madeira e quando passava aqueles ônibus que se chamava Jardineira, fazia croc...croc... Eu tinha medo, tinha impressão que ia cair naquele rio com aquelas águas límpidas, ainda. Comentavam que já estava bastante poluída, mas as pessoas pescavam ali naquela beirada de rio. Agora, a gente passa ali e sente um cheiro horroroso, um cheiro ‘malvado’."

Risos...

Kaiser: Paulistano, 46 anos e reside na Vila Brasilândia.
"Trago a recordação do Distrito de Vila Brasilândia, exatamente no Distrito de Vila Schmidt e Cruz das Almas, chamada, hoje, de Estrada do Sabão porque as pessoas escorregavam muito lá, tinha muito barro. A memória que trago agora é de mais ou menos 35 anos atrás quando eu tinha aproximadamente oito ou nove anos e  no dia 08, na semana passada, eu estive exatamente nesse local que eu vou descrever. Antes, lá, era uma chácara de verduras entre a Estrada do Sabão e essa rua principal da Vila Schmidt. Tinham lagoas onde as crianças invadiam essa chácara para pegar peixinhos e “pegar” também umas verduras (risos...). Coisa de criança, de molecada! Esse local, onde era essa chácara hoje, toda essa área foi reservada e lá tem dois campos de futebol. A prefeitura lá criou um parque e esse parque está sem infra-estrutura, tá abandonado e tem duas piscinas, uma para adulto e uma para criança, vazias, e tem uma quadra coberta. Lá teve uma reunião agora onde esse espaço foi adotado pelo “Criança Esperança” da Rede Globo e estão começando projetos para fazer um trabalho social. Lá no entorno tem favela, é um local de exclusão social. Nós estávamos no dia 8 reunidos lá com a rede Senac, e eu tava recordando: “Puxa pessoal, há 35 anos atrás aqui tinha uma lagoa e nessa lagoa eu vinha buscar peixinhos”. Interessante, eu vi uma foto esses dias em casa dessa rua, quando eu era criança com meus primos, essa rua, esse bairro e eu voltar!"

Francisca: Nasceu em Cravinhos, mudou-se para São Paulo há 37 anos e mora em Cerqueira César.
"É interessante como a memória vem! [referindo-se à influência da memória coletiva nas lembranças]. Eu me lembro que a primeira vez que vim para São Paulo eu devia ter três, quatro anos e meu tio caçula, era um moço. A gente morava no Brás e tinha uma família italiana que era muito amiga nossa e os rapazes competiam nas regatas do Clube Tietê. Meu tio nadava bem e eles foram juntos para competir, nadar, remar. Lembro-me de minha avó aflita: “eles não voltam, que perigo de se afogar no rio!”. Eles foram e meu tio tinha fotos com eles na Catraia,(nome do barco) chamava assim, de uniforme com umas camisetas que vinham quase até o joelho, calções enormes para nadar no rio Tietê."

Ruth: Boliviana, mudou-se para São Paulo há 40 anos e mora em Pirituba.
"Cheguei a São Paulo em 1965. Morava em Pirituba, passava pelo rio Tietê que tinha um cheiro que ninguém agüentava mais. Eu fiquei impressionada com isso e comecei a saber que tinham lagoas por perto de Pirituba, Vila Zatti. Agora, nessa lagoa foi construído um lindo parque. Perto do Mercado Central tem muitas enchentes, enche, enche tudo de água... Até quando vamos sofrer com isso? Com tantas enchentes e a gente correndo risco, morando em lugares perigosos."

Os relatos foram mesclados por momentos de emoção e alegria. Ao se lembrarem de tantos fatos, cheios de significados, o grupo foi construindo uma identidade coletiva. Ao mesmo tempo, percebia-se que, ao olharem para o presente, o medo, a insegurança e a solidão que os dias atuais reservam a todos, também fazia parte do “contado” e do “vivido”.  Era o sentimento da felicidade perdida que, contudo, não impedia que buscassem também sentido nesse tempo, que também é seu tempo.

Estes autores e atores de parte da história da cidade, de seus rios e córregos que cortavam a céu aberto o território paulistano, povoaram de sentido os fatos vividos num tempo e num espaço, hoje, muito modificado, mas ainda possível de reconhecer pelas suas palavras. O protagonismo na narrativa fez de cada testemunha capaz de iluminar um tempo e uma história guardados na memória individual e, que narrada, projeta no futuro dados para pensar a identidade, a subjetividade e a ética em nossa sociedade voltada para o individualismo e o consumo.

Nosso olhar para a cidade hoje ganha novos elementos, ressignificados pela memória de homens e mulheres que construíram sua marca identitária nesse espaço geográfico. Como diz Ecléa Bosi(1995) em seu precioso livro Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos: “Podem arrasar as casas, mudar o curso das ruas; as pedras mudam de lugar, mas como destruir os vínculos com que os homens se ligavam a elas? (...) À resistência muda das coisas, à teimosia das pedras, une-se a rebeldia da memória que as repõe em seu antigo lugar”. Diz ainda, ”quando a sociedade esvazia o seu tempo de experiências significativas, empurrando-o para a margem, a lembrança de tempos melhores se converte num sucedâneo da vida. E a vida atual só parece significar se ela recolher de outra época o alento” (BOSI, 1995).

Referências

BENJAMIN, Walter; Magia e técnica, arte e política. In: Obras escolhidas. v.I, São Paulo: Brasiliense, 1994, p.201.

BOBBIO, Norberto; O Tempo da Memória. De Senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campestre, 1997, p.30.

BOSI, Eclea; Memória e Sociedade - Lembranças de Velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p.40-371.

ROSA, Guimarães; Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olimpio, 1972, p.20-460.
 

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*Este ensaio é um registro dos depoimentos colhidos na Oficina de Memória das Águas da Cidade de São Paulo, realizado no âmbito da Universidade Aberta do Meio Ambiente e da Cultura de Paz – UMAPAZ com o objetivo de rememorar a história das águas nas comunidades de origem dos idosos e resgatar a história dos recursos hídricos da cidade de S. Paulo, das quais deriva este trabalho. Foram realizados três encontros com idosos ligados ao Grande Conselho Municipal do Idoso, aos Grupos de Convivênia e ao Fórum de Idosos da cidade nos dia 06, 13 e 20 de fevereiro de 2006. A UMAPAZ é um projeto da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente de São Paulo para formação de uma educação ambiental e para a paz. Para designar pessoas com mais de 60 anos utilizaremos o termo velho que se refere a uma fase da vida, como jovem se refere à juventude e criança à infância. Essa também é uma opção ideológica já que queremos recuperar o sentido da palavra, descaracterizado pela compreensão moderna de que velho é o descartável, o ultrapassado, o sem importância.
**Assistente Social e Mestre em Gerontologia, Educadora da equipe da UMAPAZ. E-mail - Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. .brEste endereço de e-mail está protegido de spam bots, necessita do Javascript ativado para ser visualizado
*** Assistente Social e Doutoranda em Serviço Social, Educadora da equipe da UMAPAZ, E-mail Este endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo.
 
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