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O dia em que o Miolo encarou Salvador - um outro filme*

 Fátima Fróes**

 

Desde o princípio o sinal foi claro: algo estava sendo tramado. Com um simples telefonema para um Centro Social, foi marcada a reunião no meio da tarde. Horário de trabalho, dia útil. Da reunião que se esperaria morna, cinqüenta lideranças compareceram. Não eram cinqüenta pessoas do bairro, eram cinqüenta lideranças do bairro. O líder da banda de reggae, os mestres de capoeira, a diretora da escola, o maestro da bandinha. Cinqüenta pessoas que falavam dos seus sonhos, das suas autonomias e falavam também de abandono.

O segundo grande sinal foi o encontro. Era em um não lugar. As pessoas esperavam nas esquinas e o grupo que liderava ia convocando as que estavam por ali. Para um não-lugar. A reunião aconteceu no meio da única praça existente, fruto de uma luta insana dos moradores, que não reconheciam a faixa de quem assinava o projeto. O sotaque da maioria, da zona rural. Quatro lideranças comunitárias bebiam e todos encaravam com naturalidade. Ah! São alcoólatras... Rótulos, apenas. Ali estavam todas as pessoas que se conheciam. Um agrupamento com identidade e personalidade.

O Cine-Teatro inaugurado em 1985, e fechado sem nunca projetar um filme, assistiu àquela reunião na praça.

Contaram a história do lugar, das fontes de água quando eram limpas e abasteciam a cidade, das sete hortas comunitárias e de como todos, todos mesmo, vieram da zona rural e ali se estabeleceram: a vassoura de bruxa e a decadência da zona do cacau, a seca em Alagoas, o fechamento de uma barragem no centro-oeste. Todos sem-terra, sem trabalho, rumaram para o lugar, um trazendo o outro. Dessa origem, as sete hortas... A água e o verde são importantes para aquelas pessoas de forma diferente que a água e o verde surgem no discurso metropolitano...

Engomadeira olha com desconfiança para a UNEB, Cajazeiras é grande demais para ser visto, permanece invisível, Águas Claras é lugar de fronteira, Pernambués é centro da cidade, São Rafael e São Marcos são da gente do Pólo. Nomes e renomes da cidade da Bahia. Tancredo Neves e Beiru. A Avenida Abelardo Barbosa fica em Sussuarana, Terceiro Sinal.

Os moradores conhecem as águas, consideram a história do seu lugar. Convivem e sorvem a cidade no seu cotidiano. O posto médico, a praça, o rio que está sujo, a nascente, a árvore, têm dimensões muito específicas, mais que mera utilidade. São cidadãos do mundo, universais. Outra urbanidade.

Cada pedaço dessa cidade foi uma conquista. A praça, a linha de ônibus, a energia elétrica, o pedaço asfaltado, assim como a laje, o reboco, o puxadinho. O sentimento de pertencimento se confunde. Como um sonho e pesadelos coletivos. Que cidade se descortina com tanta dificuldade e ao mesmo tempo com tanta propriedade? A cidade pertence a ninguém, mas aquele pedaço deve ser reivindicado também por cada morador. A imobilidade, a invisibilidade, a luta cotidiana por direitos básicos não anula a capacidade de sonhar e de se expressar.

O Miolo de Salvador não é o centro. É aquela área enorme e invisível resultante de diversos vetores de crescimento (des) ordenados, quase espontâneos, traçados arbitrários.. Diversos "planejamentos". Conjunto após conjunto, empurrando a população para caixotinhos, áridas paisagens com construções simétricas.

Nas conferências dos mais diversos temas, nos fóruns políticos, a velha cidade sempre se sobressai a esta "nova". A articulação dessa população se dando nas diversas conferências. Na percepção de que estão alijados, não só pelo poder público, mas pelas outras lideranças, estabelecidas, prevalecentes. A reação começou naquele primeiro sinal, dessa vez a Conferência é nossa! Significativamente, a Conferência de Cultura, a que tocaria mais profundamente suas possibilidades de expressão.

E a cidade que nasceu invisível se organizou e marchou sobre Salvador. Fecharam suas chapas e votaram, confrontando as outras lideranças culturais. Não votaram só geograficamente, mas definiram, um a um, a quem dariam seus votos. Aconteceu. Portando seus crachás, avançaram, e levaram. Imbatíveis. O invisível ficou vermelho. Um pedágio justo.

Salvador que se cuide, o miolo explodiu...

(No filme de Vittorio de Sica, Milagre em Milão, realizado em 1950, os moradores de uma ocupação urbana se salvam voando em vassouras, em Salvador, eles voam em crachás. Milagres, de qualquer jeito).
 

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*Este ensaio foi inspirado na Segunda Conferência Municipal de Cultura realizada pela Fundação Gregório de Mattos em 2007, com representações das oito grandes regiões em que a cidade foi dividida: Brotas, Federação, Centro, Península e Comércio, Subúrbio, Orla Atlântica, Liberdade. A oitava área era o "Miolo Central", formada por diversos bairros que surgiram após a década de 70.
**Gestora e produtora cultural, integrante do Conselho Estadual de Cultura e Coordenadora do Núcleo de Cinema e Audiovisual - NAU.
 
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente - SEDHAM
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