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O Dilema das Áreas Urbanas Frente à Legislação Ambiental

Lívia Maria Gabrielli de Azevedo*



 

A legislação ambiental é bastante complexa e extensa, mas quase que exclusivamente voltada para regulamentar e estabelecer diretrizes que se aplicam principalmente às áreas naturais ou com pequeno grau de antropização. Trata, então, de áreas naturais em estágio inicial, médio ou avançado de regeneração, áreas de preservação permanente, unidades de conservação, áreas de proteção ecológica, entre outras. Outra vertente legal está voltada para a questão do controle de poluição e monitoramento ambiental. De qualquer forma, é difícil encontrar referências nessa mesma legislação no que se refere às áreas urbanas e, principalmente, àquelas localizadas em áreas de fragilidade ambiental como é notório o caso de aglomerados, cidades e/ou povoados localizados em APA´s (Áreas de Proteção Ambiental).

Nos casos onde estabelece alguma referência focando a situação urbana, aparece em forma de artigo específico de alguma lei, decreto ou resolução que normalmente remete o assunto a ser regulamentado nos Planos Diretores municipais ou noutros instrumentos legais de âmbito local.

Na maioria dos casos de análise do empreendimento ou planejamento urbanístico, tanto no nível nacional como estadual e pela própria abrangência desses instrumentos, é comum a lacuna de referências legais que favoreçam a regulação ambiental do espaço urbano. Na maioria dos casos, os analistas e planejadores, na falta de parâmetros básicos específicos para as áreas urbanas de fragilidade ambiental, recorrem à legislação ambiental básica e tendem, sem nenhuma ponderação, a aplicar diretamente a legislação de conceito ambiental voltada para proteção e conservação de áreas naturais nas áreas urbanas, muitas vezes degradadas, resultando em análises e planejamentos urbanísticos distorcidos da

realidade.

Também é comum a exigência dos órgãos ambientais quanto à obrigatoriedade de observar as faixas de proteção, ou as áreas de preservação permanente, em locais muitas vezes sem nenhuma condição de recuperação em função do grau de ocupação ou degradação. Este é o problema a ser enfrentado, já que urge a necessidade de novos rumos para a legislação em vigor. Esta é uma questão recorrente que técnicos especializados em áreas urbanas frágeis se deparam no dia-a-dia, que, sem solução no curto prazo, poderão estar criando dificuldades sociais e econômicas no lugar de tentar resolver e equacionar os problemas de forma a atingir a tão sonhada sustentabilidade ambiental.

No nível federal, as primeiras iniciativas de regulamentação do uso do solo em áreas urbanas ambientalmente frágeis podem ser exemplificadas através do Decreto Federal 24.643 de 10/07/34 (Código de Águas) que estabelece uma faixa de 10m nas margens das correntes públicas de uso comum para a execução de serviços públicos e o trânsito dos agentes da administração pública, e uma faixa de preservação permanente de 30m em torno das lagoas localizadas em áreas urbanas. Seguiram-se o Decreto Federal 9.760 de 05/09/46 que “Estabelece os Terrenos de Marinha e Bens Imóveis da União e dá outras providências” e a Lei Federal nº 4771 de 15/09/65 (Código Florestal) e respectivas modificações que proíbe o parcelamento do solo no raio de 50 m no entorno das nascentes e nas encostas com declividade superior a 45%. Do ponto de vista estritamente urbanístico, é importante salientar a Lei Federal 6.766/79 que “Dispõe sobre o parcelamento do solo e dá outras providências”, alterada pela Lei Federal 9.785 de 29/01/99, que restringe o parcelamento em áreas com declividade superior a 30%, nas áreas de interesse especial e naquelas geologicamente inadequadas.

Na década de 80, a preocupação com a regulamentação do meio ambiente começa a dar sinais de expressividade e sistematização dos espaços naturais, considerando a formulação de instrumentos legais para a preservação e conservação dos ecossistemas, como exemplificado pela Lei Federal 6.902 de 27/04/81 que “Dispõe sobre a criação de Estações Ecológicas, Áreas de Proteção Ambiental e dá outras providências”, a Resolução CONAMA 004/85, Resolução CONAMA 10/88 de 14/12/88 que “define o conceito de Área de Proteção Ambiental e as Zonas básicas para a elaboração de zoneamento ecológico-econômico”. Nesse caso específico, faz-se referência à regulamentação dos projetos urbanísticos em APA´s.Também é dessa época a Lei Federal 7.661 de 16/05/88 que “Institui o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro e dá outras providências”.

A iniciativa dessa década culmina com a Constituição Federal de 1988, que confere à questão ambiental importância constitucional através do seu art. 225 do Meio Ambiente, onde classifica os ecossistemas frágeis, estabelece diretriz geral para sua proteção e aponta para a criação de instrumentos de gestão dos territórios protegidos. No entanto, os instrumentos de gestão estabelecidos na Constituição (art.225, inciso III) só foram regulamentados doze anos mais tarde, pela Lei Federal nº 9.985 de 18/07/00 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC e dá outras providências.

Nos anos 90, poucas iniciativas a nível federal foram tomadas no estabelecimento de instrumentos legais na direção da proteção do meio ambiente, a exemplo do Decreto Federal 99.274 de 06/06/90 que “Regulamenta a Lei 6.902 de 27/04/81 e a Lei 6.938 de 31/08/81, que dispõem respectivamente sobre a criação de Estações Ecológicas e Áreas de Proteção Ambiental e sobre a Política Nacional do Meio Ambiente e dá outras providências”.Também é desse período o Decreto Federal 750 de 10/02/93 art. 5º incisos I, II e III que permite o parcelamento do solo em áreas com vegetação em estado médio e avançado de regeneração mediante autorização do órgão estadual ou municipal competente, e a Resolução CONAMA 237 de 19/12/97 que estabelece as instruções normativas, instrumentos de gestão e procedimentos para o sistema de licenciamento ambiental.

Porém, o destaque importante dessa década pode ser atribuído à Lei Federal 9.605 de 12/02/98 que “Dispõe sobre sanções penais e administrativas derivadas das condutas e atividades lesivas ao meio ambiente e dá outras providências” e, portanto, institui a responsabilidade individual sobre os danos ao meio ambiente; no entanto, até o fim da década de 90, os instrumentos legais voltados para o meio ambiente foram bastante generalistas e focados na proteção e conservação do ambiente formado por ecossistemas naturais.

Na atual década, é possível notar que as iniciativas no âmbito federal de regulamentação ambiental saem do nível conceitual e começam a dar sinais de preocupações específicas, como no caso do Decreto Federal nº 4.297 de 10 de julho de 2002 que regulamenta o art. 9º, inciso II, da Lei nº 6.938 de 31 de agosto de 1981, estabelecendo critérios para o Zoneamento Ecológico-Econômico do Brasil – ZEE e dá outras providências, a Resolução CONAMA 303 de 20/03/2002 que regulamenta os parâmetros, definições e limites de Áreas de Proteção Permanente, a Resolução CONAMA nº 341 de 22 de setembro de 2003 que dispõe sobre critérios para caracterização de atividades ou empreendimentos turísticos sustentáveis como de interesse social para fins de ocupação de dunas originalmente desprovidas de vegetação na Zona Costeira, e a Resolução CONAMA nº 369 de 28 de março de 2006 que dispõe sobre casos excepcionais, de utilidade pública, interesse social ou baixo impacto ambiental, que possibilitam a intervenção ou supressão da vegetação em Áreas de Preservação Permanente – APP.

Apesar de todos os avanços verificados através dos instrumentos legais vigentes no país, a regulamentação de uso do solo em áreas urbanas de fragilidade ambiental ainda é incipiente. Por exemplo, o Estatuto da Cidade (lei federal nº10. 257/2001) vem contribuir de forma ímpar na formulação de uma gestão sustentável, mas, como toda lei federal, define apenas as diretrizes gerais que norteiam o tipo de gestão a que se pretende chegar para configurar o espaço urbano, proteger o ambiente e atender a população nas suas demandas básicas.

Os avanços dessa Lei na área ambiental aparecem através dos instrumentos já previstos na Constituição Federal que foram incorporados pelo Estatuto de forma a garantir a sustentabilidade da cidade. São eles: o direito de superfície, o direito de preempção, a outorga onerosa do direito de construir, as operações urbanas consorciadas, a transferência do direito de construir, o estudo de impacto de vizinhança e o Plano Diretor que são, na sua essência, instrumentos urbanísticos, mas, necessariamente, contribuem para a construção de um ambiente mais sustentável. Mesmo a partir de um ponto de vista mais restrito ao meio ambiente natural, o Estatuto da Cidade traz contribuições importantes. Cidades democraticamente planejadas e socialmente mais justas colocam-se em associação direta com um desenvolvimento urbano que gera menos efeitos perversos sobre os recursos ambientais.

No nível Estadual, a situação da formulação dos instrumentos legais voltados para a proteção ambiental em áreas urbanas encontra um paralelo no formato federal. Destacam-se a Constituição do Estado da Bahia em 1989 que traz um capítulo exclusivamente voltado para o meio ambiente, a Lei nº 6.569 de 17 de janeiro de 1994 que dispõe sobre a Política Florestal do Estado da Bahia, a Lei nº 7.799 que institui a Política Estadual de Administração dos Recursos Ambientais, de 07 de fevereiro de 2001, e o Decreto Estadual nº 8.169 de 22 de Fevereiro de 2002 que altera dispositivos do regulamento da Lei nº 7.799 de 07 de fevereiro de 2001, aprovado pelo Decreto nº 7.967 de 05 de junho de 2001.

Recentemente foram aprovadas as Leis nº 10.431 de 20 de dezembro de 2006 que “Dispõe sobre a Política de Meio Ambiente e de Proteção à Biodiversidade do Estado da Bahia e dá outras providências” na tentativa de sistematizar toda a legislação ambiental existente para o Estado numa única lei, que mais uma vez não aborda o tema do ambiente urbano, e a Lei nº 10.432 que “Dispõe sobre a Política de Recursos Hídricos, cria o Sistema Estadual de Gerenciamento de Recursos Hídricos e dá outras providências”, que revogam as disposições em contrário.

No nível local, a questão dos ambientes urbanos se agrava ainda mais. As leis específicas sobre o uso e ocupação do solo e Planos Diretores quase em sua totalidade não respondem a essa questão. No caso do primeiro instrumento legal, a visão microespacial se restringe aos parâmetros de uso do solo, especificamente para os lotes. Já os Planos Diretores, formulados como instrumento político de apoio à gestão municipal, respondem aos aspectos administrativos, às diretrizes gerais, aos programas sociais e de infra-estrutura e questões que dizem respeito aos vetores de crescimento, às áreas de expansão, aos zoneamentos propositivos de uso e ocupação do solo, o que significa dizer que sua finalidade é mais ampla e também não estão focados na questão específica da regulamentação do ambiente urbano.

É fato que existe uma lacuna na gestão do território urbano ambientalmente frágil. Não se trata apenas de um problema de existência ou não de instrumentos e marcos regulatórios, mas um problema de visão sobre a gestão urbana e ambiental. A conferência de Tbilisi (1977) considerou o meio ambiente como “o conjunto de sistemas naturais e sociais em que vivem os homens e os demais organismos e de onde obtêm sua subsistência. Esse conceito abarca os recursos, os produtos naturais e artificiais com os quais se satisfazem as necessidades humanas. O meio natural se compõe de atmosfera, biosfera, hidrosfera e litosfera. O meio social compreende os grupos humanos, as infra-estruturas materiais construídas pelo homem, as relações de produção e os sistemas institucionais por ele elaborados”.

É importante firmar bem este conceito porque há teóricos que entendem meio ambiente apenas como meio físico. Uma visão fragmentada da realidade, míope em relação à dependência do meio natural, pode escamotear as causas da problemática ambiental e levar a soluções equivocadas e prejudiciais às populações. Portanto, o conceito de meio ambiente engloba os aspectos naturais e aqueles decorrentes das ações dos seres humanos. Daí a máxima: “as questões ambientais e as questões sociais são indissolúveis”.

No caso brasileiro e dos países em desenvolvimento, a gestão ambiental deve ser norteada pelo combate à miséria, pois o desenvolvimento sustentável exige, como primeira medida, o uso mais racional dos recursos naturais, pautado por uma nova ética, que demanda novas reflexões e ações sobre a dignidade, as opressões e desigualdades, onde o ideário seja a qualidade de vida das pessoas. Busca-se um novo comportamento individual e coletivo, gerando conhecimento local sem perder de vista o global.

Hoje, o aumento da pobreza e do desemprego vem pressionando ainda mais os recursos ambientais, à medida que um número maior de pessoas se vê forçado a depender mais diretamente deles. Um país onde a pobreza é endêmica estará sempre sujeito a catástrofes ecológicas. É no meio ambiente urbano que se dão as maiores contradições e por isso a necessidade de abordá-lo na sua real dimensão com rebatimento numa legislação ambiental compatível a essa realidade.


*Arquiteta Urbanista, Especialista em Desenho Urbano e Gestão do Patrimônio Ambiental.
 
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente - SEDHAM
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