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Salvador e os Caminhos da sua Cultura

Paulo Lima *

Veracidade – Ao tratar da cultura o Sr. recusa noções unívocas e fala-nos de perspectivas polimorfas, geográficas, étnicas, históricas, climáticas e sociais, de várias culturas e mesmo de vários Brasis. O Sr. chega a definir cultura em um dos seus trabalhos como um conjunto multifacetado de formas de experimentar a vida, como um “colar de significações renováveis pela cristalização de cada nova síntese”. O que qualificar, enfim, como cultura no contexto pós-moderno e o que pode ser nominado como cultura em uma cidade como Salvador?


Paulo Lima - De fato, não se pode separar a cultura da vida. As pessoas desta cidade se aglomeram em torno de um espaço urbano caótico, fruto de uma rima perversa entre ocupação desordenada, ausência de políticas públicas, índice alarmante de pobreza e desigualdade social comparável à da Namíbia — o que dizer da cultura? Poderia estar imune a esse quadro?

Obviamente que não. O tamanho do problema pode ser intuído a partir da constatação da ‘invisibilidade’ que atinge uma boa parte dos nossos territórios. Somos, em grande medida, uma cidade que se desconhece profundamente, em vários níveis. Esse desconhecimento daquilo que nos cerca equivale a um julgamento de valor, uma atribuição de pouca relevância. Quais os projetos culturais alentadores em Paripe, Águas Claras, Mussurunga, Palestina? O que pensam essas pessoas sobre cultura? Quem saberia responder isso? Como as instituições de conhecimento enfrentam (ou ignoram) o desafio cultural da cidade?

A invisibilidade caminha de mãos dadas com uma grande dificuldade de articulação local e com a ausência de intercâmbios sistemáticos entre bairros e regiões. Para a classe média e as instituições a ela adstritas — universidades, cadernos de cultura, etc — a cidade praticamente se restringe ao que pode ser visto do carro.

Apesar de todas essas adversidades, somos inegavelmente uma referência cultural para o País. De um lado, a força simbólica daquilo que representamos — o lugar onde o Brasil nasceu, o primeiro caldeirão de encontros culturais notáveis —, de outro, a longa história de resistência e de louvável teimosia, que permitiu a preservação de uma parte representativa dos conteúdos culturais trazidos da África.

O resultado de tudo isso: uma cidade pobre, com grandes problemas urbanos, porém capaz de exibir uma quantidade expressiva de pólos culturais espalhados por seu território. Uma enorme vocação para o desenvolvimento cultural, potencializando o que já existe, e ao mesmo tempo um déficit histórico de educação formal, de construção de leitores e de fruidores críticos, capazes de impactar o nível cultural da mídia por exemplo, vulneráveis com relação ao discurso fácil da folclorização, para o bem da imagem, garantindo uma superficialidade insuportável, que afeta tudo, inclusive o carnaval.

Não é um cenário simples, até porque já não existem cenários isolados. Assim como na economia, a circulação de bens simbólicos é hoje uma rede mundial. Estamos preparados para tal desafio?

Levando tudo isso em consideração, verificamos que a questão prioritária não é a escolha de uma noção ‘avançada’ de cultura, e sim o desafio de animar um processo contra-hegemônico de ausculta das formulações das comunidades envolvidas e de diálogo criativo com tais formulações. Na verdade, nada poderia ser mais ‘avançado’ do que isso. Para mim, que gastei um tempo razoável de vida tentando entender Bach, Brahms e Schönberg, é também um exercício de desapego com relação aos critérios e antolhos da cultura européia.

Um processo dessa natureza é necessariamente contra-hegemônico, na medida em que rejeita a imagem pré-fabricada de uma Bahia eufórica e performática, cheia de ritmo — rejeita o estereótipo tão utilizado nos últimos anos como forma de propaganda de um estilo político, e rejeita inclusive a noção tradicional de cultura como essencialmente a torre de marfim das artes e do pensamento. É contra-hegemônico portanto, na medida em que busca atribuir valor aos agentes periféricos do sistema, reconhecendo seu poder criativo a priori, independentemente de sistemas de gosto e padrões de qualidade vigentes.

Vale a pena insistir, a invisibilidade é da ordem do sintoma. As causas, ou seja, os processos de base são múltiplos e desafiadores pois reúnem causalidades de várias ordens — locais, regionais e globais.

A utopia, no sentido esculpido por Boaventura de Souza Santos — rebeldia, ao invés de aceitação passiva das coisas, anseio por autonomia, campos de experimentação local em busca de articulação em rede, tudo isso e mais alguma coisa —, está inextricavelmente implicada no desafio do pensamento inovador na área da cultura, assim como em todas as outras questões fundamentais do nosso tempo — ética, meio-ambiente, sustentabilidade, diversidade etc. Sendo assim, nomearemos como ‘cultura’ tudo aquilo que seja considerado como tal pelos agentes culturais da cidade, ou seja, qualquer cidadão ou grupo de cidadãos.

A saúde cultural de nossa gente depende menos do estágio atual daquilo que é considerado ‘cultura’ e mais da possibilidade de transformação criativa desse patamar, seja ele qual for. Por isso, falamos em ‘novas sínteses’. Também por isso, entendemos como espaço nobre de política pública em cultura a zona do agrião onde acontece o perene jogo entre recepção e proposição de linguagens e universos estipulados de sentido – a cabeça (e o pé) do cidadão. Mesmo que essa cabeça (e esse pé), no atual momento, prefiram passar a noite de São João dançando ‘arrocha’, ao invés de forró, como foi o caso em algumas comunidades populares de Salvador.

Veracidade - O Sr. fala em três ramos da cultura: a letrada, a que é gestada e veiculada através da mídia e a cultura ancestral, produzida no âmbito das comunidades. O que é cultura da comunidade? É possível falar em cultura popular? Como se relacionam o comunitário, o popular e o erudito em Salvador?

Paulo Lima - A construção dessa síntese tripartite surgiu justamente do desejo de arejar a formatação tradicional bipolar, e tantas vezes improdutiva, que pensa o popular e o erudito como faces distintas, e de moedas distintas... Em geral faço isso sem muito alarde, mas a pergunta acabou colocando o dedo na ferida.

Lembremos de Affonso Romano de Sant’anna: “O povo é um ovo, que ora gera e degenera, que pode ser coisa viva ou ave torta, depende de quem o põe, ou quem o gala” (Que país é este?). E mais adiante: “Se chamais povo a malta de famintos, a marcha regular das armas, os urros e silvos no esporte popular. Então mais amo uma manada de búfalos em Marajó”. Gil também contribui para o debate, lembrando que o povo sabe o que quer, mas que também quer o que não sabe.

Desconstruindo por outro lado: existe algo mais erudito — no sentido de imbricação entre complexidade e organicidade — do que a música afro-brasileira, os toques de candomblé e a delicada sincronia entre ritmo e melodia? Como classificaríamos a ‘produção’ cultural dos terreiros (vale observar que até essa nomeação da coisa como ‘produção cultural’ já é uma violência)? E o Ilê Ayê, teria que ser contabilizado como ‘grupo folclórico’, como de fato foi na década de 80 por uma burocrata da cultura, na Funarte? O que dizer das músicas indígenas, que tantas vezes soam mais vanguardistas que os compositores de vanguarda?

Definitivamente, precisamos de outras categorias. A síntese tripartite estabelece campos de referência, deixando ampla margem para interações e sobreposições. Não são marcadores trazidos do mundo-da-lua. Todos os que alisaram os bancos da escola foram tocados pela cultura letrada. Todos os que perambularam pelas ruas sentiram a pujança dos modos de vida que aqui vêm se cruzando há séculos. A força da mídia dispensa comentários.

Mais do que rótulos, esses campos estabelecem um convite para que o processo exuberante de negociações, atritos, trocas e rupturas culturais que têm sido nossa marca distintiva possa continuar. O nosso futuro cultural não está escrito na Europa, nem nas bibliotecas das universidades americanas e muito menos na Globo ou SBT. Os possíveis diálogos, cheios de humor e paradoxo entre os três pólos estabelecem uma curiosa possibilidade de pertencimento, uma solução heterodoxa que os nossos melhores criadores vêm praticando desde Gregório de Mattos.

Fenômenos tão díspares como a música de Caymmi, as cantigas de caboclo, os quadros de Emma Vale e Chico Liberato, a música de Lindembergue Cardoso, o texto de João Ubaldo (especialmente Viva o Povo Brasileiro), o cinema de Glauber Rocha, e tantos outros, só podem ser entendidos a partir dessa perspectiva de identidade polimorfa, que funciona como um legado de qualidade para todos nós.

Com relação ao conceito de comunidade, lembro seu recente rejuvenescimento a partir da malha conceitual de Maffesoli. Visitar as comunidades em Salvador é algo bastante concreto, mas não existe obviamente um tipo de cultura das comunidades, e sim um traço unificador dos grupos pobres, que precisaram utilizar metodologias de existência completamente diferentes das da classe dominante. Além, é claro, do peso das ancestralidades, que fica bastante aparente, apesar da recente fragilidade do tecido, impactado pela violência e pelas formas de buscar saídas desse cenário.

Veracidade - O Sr. é um compositor, pesquisador, uma referência pelo trabalho desenvolvido. Como lida e vivencia, no seu trabalho, com o erudito e o popular? Quais as potencialidades, vocações e formas de articulação e inserção destas formas de experenciar a vida na nossa Cidade?

Paulo Lima - Aproveito a ocasião desta pergunta para observar a tendência de tratar as políticas culturais como assunto aparentemente desvinculado da esfera da criação propriamente dita. Uma coisa é advogar a ressignificação da cultura como algo mais do que a torre de marfim das artes, como atributo de cidadania, outra é esquecer que a fonte primária de energia do processo é a criação. Uma grande amiga, militante da dança por muitos anos, uma vez disse, brincando: “Não, esse seminário aí é do povo de cultura, não tem nada a ver com a gente das artes”.

É preciso que haja, portanto, uma conexão direta entre a criação, seja ela individual ou em grupo, e a dimensão coletiva, algo que certamente inclui a dimensão política. Adorno já disse isso com todas as letras, embora com um certo centramento na Europa, ou seja, com pouca visão da diversidade antropológica do mundo: quem faz arte faz sociedade, quem faz arte lida com historicidade.

Se os criadores brasileiros do Século XX fossem seguir exclusivamente os ditames dos movimentos vanguardistas da Europa, não haveria espaço para diálogo com a miríade de contextos culturais fixados em todos os grotões do país, dando testemunho dos séculos de negociação cultural entre europeus, africanos e indígenas. O meu caminho como compositor passou pela descoberta de que o diálogo com essa ‘riqueza’ cultural sedimentada nos cantos do Brasil pode ser nossa marca distintiva.

Esse trabalho convergiu para a descoberta do ‘sistema rítmico’ inerente aos toques afro-brasileiros, e para a montagem de obras que dessem conta dessa viagem, ou seja, que conseguissem traduzir a trajetória de um olhar que partiu da academia, dos próprios ditames da vanguarda, para a reconstrução de estruturas musicais híbridas. Essa trajetória não rejeita nenhum dos pólos.

Passando da experiência pessoal de criação para a gestão da cultura, devo lembrar que um experimento chamado de ‘Série Brasil’, realizado em 2004/2005 ofereceu ao público de Salvador ‘concertos’ que ilustravam a possível convivência de repertórios aparentemente incompatíveis. Se um indígena Timbira canta suas canções ao lado de música eletrônica de vanguarda (no caso, foi a música de Rodolfo Caesar do Rio de Janeiro), ambos se enriquecem com a experiência.

Vejamos, por exemplo, o caso do Centro Histórico de Salvador, o desafio do Pelourinho. A questão tem uma força simbólica considerável, a ponto de mobilizar a mídia nacional — Cf. recente matéria da Folha de São Paulo sobre o Pelourinho. Projetam-se sobre a região os três vetores que comentamos anteriormente: a) a força simbólica de sermos o umbigo do Brasil, presente sob a forma de patrimônio histórico em toda a região; b) a veia de resistência, que acalentou projetos revolucionários como o Olodum, servindo de farol para todos, e: c) as mazelas do tecido social, projetando sobre a área o desafio maior da desigualdade.

Como parque temático cultural, o Centro Histórico previa a ingestão considerável de recursos para atrair os empresários e o controle do terceiro vetor pela força de repressão. Ao longo do tempo, o cansaço do modelo ficou mais do que aparente, e a repressão da desigualdade e da incidência de ambulantes e passantes ‘indesejáveis’ (do ponto de vista do cenário armado), passou a ser um problema de difícil solução.
Como repensar este caso cultural? E é aí que tocamos diretamente na questão colocada por Veracidade. O Pelourinho exige um trabalho concentrado de remodelização. Isso significa repensar a indexação imaginária adotada pelo modelo anterior, encontrar outro caminho. Quais os vetores de imaginário que deveriam ser convocados para essa remodelização? Como, por exemplo, acionar/enfatizando a vocação educacional do sítio histórico? Como acolher a contemporaneidade em diálogo com a riqueza étnica? Está aí um belo desafio de concepção e de realização de algo que aponta para a noção de cristalização de novas sínteses.

Veracidade - Em que consiste a intervenção da Fundação Gregório de Mattos (FGM) no campo cultural? É possível falar em uma política cultural no âmbito da gestão municipal? A FGM, com a estrutura atual, consegue dar conta dos desafios colocados pela complexidade da vida cultural de uma cidade como Salvador?

Paulo Lima - Desafios não faltam com relação à construção de políticas culturais para Salvador. Um olhar de síntese estabelece pelo menos cinco grandes avenidas de trabalho, que aí estão a exigir respostas criativas, financiamento e avanços concretos:

1) Cultura e Participação popular: Por todas as razões imagináveis, essa é a avenida de maior prioridade. A cultura é parte indispensável para a construção de caminhos de desenvolvimento e de responsabilidade social. A cultura pode ser uma importante ferramenta de distribuição de poder. Salvador é um laboratório a céu aberto. Tem cultura e saberes por todos os lados. Como mobilizar essa energia a favor da cidade e de seus habitantes? Como desenvolver um modelo de interação entre educação e cultura?

2) Cotidiano das Artes: Os artistas, grupos artísticos, produtores, centros culturais da cidade, ou seja, todos os que já participam ativamente do ‘eco-sistema’ cultural precisam de atenção e de políticas de fomento.

3) Valorização da Memória: Memória é coisa séria. Nossa sociedade tem um débito enorme com relação à preservação das memórias culturais. De forma bastante concreta, a FGM lida com dois grandes programas nesta área: o Arquivo Histórico Municipal e a Rede de Monumentos e Sítios Históricos da cidade.

4) Intercâmbio cultural: Neste século, as identidades culturais não podem ser mais entendidas como entidades fixas e relativamente estáveis, concebidas como raízes e como passado de referência. As identidades são mutáveis, são construídas através dos diálogos e dos conflitos, de fora para dentro e de dentro para fora, de baixo para cima e de cima para baixo, de ontem para hoje e de hoje para ontem. É preciso tomar o intercâmbio como ferramenta indispensável do entendimento de nossa própria cultura.

5) Fórum permanente - diálogo com a sociedade sobre objetivos da gestão e políticas culturais: Desta avenida participam todos os esforços de estabelecer diálogo com a sociedade sobre os caminhos da gestão. É preciso desenvolver uma política eficaz de comunicação com a sociedade, permitindo inclusive a capilaridade das críticas e opiniões divergentes. Mais do que isso, é preciso trabalhar para que novas estruturas de referência surjam através de processos que estimulem a democracia.

Tomando essa síntese como guia, uma série de programas e de ações tem sido realizados, iniciando geralmente sob a forma de um movimento entre a FGM e parceiros e caminhando em seguida para as vias de institucionalização, mediante a cristalização de editais ou mesmo através do planejamento de transformação institucional.

Neste sentido, vale mencionar as seguintes linhas de trabalho, todas elas com avanços significativos (para maiores detalhes visite o nosso site http://www.cultura.salvador.ba.gov.br/:

Programa Mestres Populares da Cultura
Viva a Cultura – Lei de Incentivo
Criação dos Sites da Fundação Gregório de Mattos e 'Cultura Todo Dia'
Criação do Conselho Municipal de Cultura
Estação Cultura
Viva Salvador 2005/2006/2007
Operação 2 de Julho – Ciclo de Cultura e Civismo 2005/2006/2007
Criação do Centro Cultural da Barroquinha
Série de CDs Trilhas Urbanas (atualmente com 4 números lançados)
Série de Livros e Folhetos de informação cultural
Programação Cultural da Praça Thomé de Souza
Oficina de Projetos de Pós-Graduação em ‘Educação e Cultura’
Implantação do Núcleo Digital
Recuperação física da Casa do Benin
Recuperação física e implementação de acervo da Biblioteca Edgard Santos
Escola/Rede Municipal de Cultura – Edital Planos Locais de Cultura
Orquestra Sinfônica da Juventude - Coutos
Implantação da rede de informática na FGM
Disponibilização do acervo bibliográfico através da Rede
Programa de incentivo a atividades culturais da cidade
Programa de recuperação de sítios históricos

Esse volume de realizações dá conta do nosso esforço de enfrentar o desafio cultural da cidade. Mas é necessário reconhecer que a estrutura da FGM não é adequada para o tamanho da tarefa. A atual equipe tem dado mostras de uma dedicação louvável. Em termos de médio e longo prazo é preciso criar uma estrutura que responda à escala do problema.


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*Paulo Lima é compositor, professor da Universidade Federal da Bahia - UFBA, doutor em Educação e Artes pela USP e Presidente da Fundação Gregório de Mattos - FGM.
 
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano, Habitação e Meio Ambiente - SEDHAM
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Tel.:  (71) 2201-8400 - Fax.: (71) 3328-8465