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 Um Viário Desurbano e sem Espaços Públicos*
  Maria de Azevedo Brandão**



 

Cidades Autofágicas

A disposição territorial da ocupação, as oportunidades de circulação e a viabilização de espaços para o consumo não econômico, surgem cada vez mais como parte do capital urbano e sócio cultural e tornam-se fator econômico, de bem estar e de segurança, na medida em que incidem sobre os processos de interação social. Vias e espaços públicos valorizam a convivência, a circulação da informação, a vida cultural e a participação política.
Além disso, vale assinalar que os territórios contemporâneos são essencialmente urbanos em sua dinâmica, inclusive nas áreas rurais. Tudo é urbano. O problema é que a gestão pública, no Brasil, geralmente não concebe esse processo e não se antecipa com uma política indutora de qualidade para essas áreas que, por sua natureza, são complementares.
Políticas e práticas relativas aos espaços urbanos e urbano-regionais correspondem a um universo de ambíguas definições de competências entre órgãos, deficiente comunicação, falta de controles de desempenho e imprecisa definição de objetivos. Os planos diretores e a legislação de ocupação e uso do solo são praticamente omissos em referência à dinâmica econômica, social e cultural das cidades e suas regiões e à articulação entre núcleos do mesmo sistema. A gestão dos espaços urbanos e urbano-regionais acaba à mercê de iniciativas isoladas, freqüentemente responsáveis por soluções improdutivas, quando não devastadoras.
Sem a qualidade dos espaços urbanos e micro-regionais, o Brasil ficou ruim até para os grupos mais privilegiados. As áreas e equipamentos públicos tornaram-se inóspitos e assim, cada vez mais, temos cidades mal acabadas, autofágicas e com um ar de permanente improviso.  

Perda de Caráter e Violentação
O nosso é um urbano em permanente transformação, diferente dos velhos urbanos monocêntricos da Europa, ou do segmentado urbano americano, ambos resguardados pelo respeito à legislação. A genérica fraqueza do poder público no Brasil -- marcado pela corrupção sob os interesses de agentes privados, os baixos níveis de renda e poupança da maioria da população e o caráter subalterno das camadas médias fazem do urbano brasileiro um espaço sem caráter.
Sob esse panorama de fundo, a gestão da ocupação e do uso do solo, ai incluídos o sistema viário e as áreas públicas, subordina-se a procedimentos internos aos órgãos de planejamento e controle, sem quadros profissionalizados coesos, mas pelo contrário, sujeitos a mudanças de comando a cada novo governo. Com isso, geram-se custos irreversíveis de super-adensamento, sobrecarga da infra-estrutura e impacto sobre o sistema viário, com a freqüente violentação das áreas públicas, do patrimônio arquitetônico e ambiental e dos bairros residenciais de grupos de renda média e baixa.
E são os mais fracos e os que respeitam a lei que pagam a conta desse dinamismo selvagem.

O Viário que Desune e Violenta
Há um vício na intervenção pública quanto ao sistema viário, ao concentrar-se, na maior parte das cidades brasileiras, praticamente em uma só coisa: o tráfego de veículos. Essa visão desconhece o caráter complexo e o múltiplo significado da circulação, que envolve o movimento de pessoas, cargas e símbolos. Ignora a importância das vias e espaços públicos na estruturação do espaço físico e social, seja urbano ou rural. Freqüentemente expande, modela ou cria novas vias em resposta a situações dadas, seja sem procurar corrigir áreas problemáticas de ocupação, seja submetendo-se a exigências dos investimentos privados sem qualquer respeito ao ambiente em que insistem em instalar-se. Veja-se o caso criminoso dos shoppings que mutilam e congestionam áreas centrais de Salvador e de outras cidades brasileiras.
Aqui essa política viária e de áreas públicas que ignora o complexo e democrático sentido da circulação, produz crescentemente a fragmentação e a segregação. Vias de caráter macro-rodoviário penetram o núcleo da cidade com o único objetivo de permitir maiores velocidades aos veículos motorizados, ainda que esbarrando em tecidos quase intransponíveis pelo estrangulamento por estreitas vias antigas e, muito mais, graças a novas vias mesquinhas e à ausência de vias indispensáveis, como ligações horizontais mar a mar, vias através de bairros mais densos e passagens e ascensores para pedestres que encurtem o trajeto entre diferentes pontos. Aí, porque não usar, entre cumeadas próximas, as elegantes passarelas que pontuam a cidade, só que devidamente protegidas em suas laterais e supervisionadas por agentes públicos ou mesmo, quem sabe?, por voluntários –  moradores das vizinhanças. Enquanto isso, aos bairros da pobreza, nega-se qualquer forma eficaz e confortável de articulação viária, serviços e infra-estrutura.

Segregação e Entropia
Quanto ao interior, inclusive nas periferias metropolitanas, domina a mentalidade que valoriza apenas a criação de grandes vias expressas, deixando ao largo cidades e áreas produtivas atuais ou potenciais e desconhecendo o poder dos sistemas de circulação na geração de oportunidades de negócio, no fortalecimento das economias regionais, na prestação de serviços à população e no enriquecimento da vida social.
Fora das cidades, estradas blindadas ao acesso de povoados e áreas rurais, sem ciclovias ou faixas de pedestres, liberadas para maiores velocidades e, crescentemente pedagiadas, dividem velhos espaços de sociabilidade, isolando vizinhos cuja convivência seria uma garantia de bem estar e segurança social.
Na grande Salvador, a Estrada do Coco e a Linha (dita para ser) “Verde”, segmentaram comunidades antes geminadas como Abrantes, morada de lavradores, e Jauá, um antigo povoado e acampamento de pesca, Areias e Pé de Areia, só para dar dois exemplos. É impossível pensar uma vida social saudável sob os efeitos dessa mutilação.  Hoje a criminalidade naquela região é absolutamente apavorante, porque se destruiu completamente a cibernética social que sustentava uma vasta rede de pequenas comunidades ali e por toda a redondeza. O jovem que saia de Abrantes, à noitinha, para encontrar parentes e conhecidos de um lugarejo como Grajeú, ou vinha de São Bento para Bom Jesus, no norte do município de Camaçari, não pode mais fazê-lo; o adulto que caminhava para jogar seu dominó com vizinhos, a 1 ou 2 km de distância, também não o pode. Idosos e doentes encontram dificuldade em ir ao um posto médico, escolas subutilizam sua capacidade, porque uma estrada divide o espaço, em vez de unir, com seu fosso de 1m x 1m ou mais, em uma área sob franca expansão urbana da Capital, o que acrescenta mais um fator de agravamento.

Salvador - Métropole Autista e Esquizóide
No Brasil, núcleos metropolitanos não mantêm articulação com seus municípios vizinhos e restringem-se a contatos instrumentais com os órgãos estaduais e federais, sem qualquer perspectiva de articulação estratégica dos complexos urbanos.
Sob vários títulos, certos outros núcleos são também verdadeiros centros de âmbito macro-regional, mas vários estão longe de exercer uma verdadeira liderança metropolitana. Em ambos os casos, são metrópoles autistas, sem dialogo com suas próprias redondezas, como é Salvador, exceto, neste caso, frente à estreita faixa da orla atlântica – mercadoria em expansão.
A descontinuidade física e logística entre sistemas viários macro-regionais, interestaduais e além, versus redes urbanas e micro-regionais, responde pelas periferias-gasolina, os cinturões rodoviários que encapsulam cidades e povoados do interior e fraturam os espaços micro-regionais entre um campo solitário, pobre e desassistido e um urbano congestionado, muitas vezes inóspito e murado por um anel de poluição e risco de acidentes e de criminalidade.
Enquanto autoridades públicas , empresas de turismo e a indústria da construção civil convencem estranhos e moradores das virtudes de uma Salvador-mercadoria, esta cidade perde cada vez mais o seu equilíbrio e torna-se crescentemente mais desconfortável, violenta e mal servida.
Uma política improvisada, subalterna a interesses políticos e privados vem resultando em um dos mais hediondos sistemas viários que se pode imaginar. Nada mais desurbano e portanto desumano do que o sistema de vias urbanas e regionais da Capital, desde as novas ruas estreitas, com exíguos passeios, às grandes autopistas, que fragmentam, desunem, segregam e matam. 

A Usinagem da Exclusão
Se uma cidade corresponde a economias externas para o produtor e facilidades de apoio ao consumo de seus residentes, ninguém necessitará mais de uma boa ambiência urbana do que os que têm menos renda, menos espaços privados, menos mobiliário doméstico, menos informação, menos oportunidades de lazer e cultura. Entretanto, em Salvador, como em outras cidades brasileiras, é nas áreas da pobreza que se admitem os padrões menos confortáveis de assentamento, as vias e passeios mais exíguos, déficit de áreas públicas, precariedade das vias, iluminação pública e vigilância deficientes, sobretudo nas franjas das ocupações e nas áreas de risco.
Vale observar a competente iluminação, sinalização e presença de postos de informação e segurança nos bairros e outras áreas “nobres”, em contraste com o ambiente sombrio dos bairros da pobreza, inclusive das orlas marítimas e fluviais quando estas tangenciam esses bairros. Além disso, não há qualquer ênfase na formação de núcleos de cultura, comércio e serviços entre bairros, ou na melhoria dos sistemas viários internos a essas áreas e entre elas e outros pontos da cidade. Verdadeiras auto-estradas, ligando áreas residenciais de alta renda e de comércio, isolam os bairros populares à sua margem, a que resta apenas viver o contraste entre sua precariedade e a pujança de certas obras públicas e dos veículos privados.
A exclusão está no coração do urbanismo convencional dos governos.

A Opacidade dos Bairros da Pobreza
A ameaça de violência está certamente ligada à segregação dos bairros populares e sua intransparência interna. A idéia da criminalidade genérica dos bairros pobres aparece em todas as conversas sobre essas áreas nas cidades brasileiras hoje e a recusa a circular nas mesmas marca sistematicamente as opções de itinerário. Como uma profecia auto-confirmatória, a elaboração simbólica do isolamento físico reitera o isolamento social e a discriminação dessas áreas, que acabam por se fecharem em sistemas sociais quase autárquicos.
Sem transparência, mal equipados e superlotados, esses guetos não oferecem segurança aos seus próprios moradores, nem condições de controle social interno. Se a opacidade dos espaços de residência não explica, por si só, a violência e o tráfico de drogas, pelo menos contribui para o recrutamento de adultos e jovens para esse tráfico, para o álcool, para a evasão escolar e para a prostituição, dai a quebra da cibernética social de resistência à entropia.
Se “os brutos também amam”, como reza o titulo de um filme antigo – Shane, por que prefeitos de uma “Cidade Mãe” aqui tiram o leite das crianças e o sono de seus pais?

Carros sim, Cidadania não!
Em Salvador há um séqüito de passarelas elevadas inseguras para o pedestre. Para que? por que?, senão a certeza de que este não merece respeito, conforto e segurança. E constrói-se um trecho elevado de um “metrô” sobre um vale plano, como o Bonocô, em lugar de um sistema que comportaria trens de superfície, quando necessário, com apenas alguns túneis, passagens elevadas ou subterrâneas e sob um ou outro viaduto. Mais caro? Talvez!. Porém certamente mais urbano.
E não se sabe se outros desnecessários trechos elevados não virão. Não há desculpa!. Os vales receberiam um sistema de superfície sem maiores problemas. E ainda por cima, é o único “metrô” do mundo que começa por um trecho em que, em vez de reduzir o congestionamento do tráfego por veículos particulares, está destinado ao consumo da população pobre – se esta poder pagar as passagens a serem cobradas. O consolo talvez seja servir de cobertura para vendedores ambulantes e moradores sem-teto, ainda que sujeitos à companhia de batedores de carteiras.

Shoppings Esmagadores 
Aqui, também trocam-se quarteirões, áreas verdes e terrenos baldios – estes  últimos com potencial para vias amplas, parques e praças, por shoppings, no mais absurdo descaso pelo espaço público. Veja-se o Salvador Shopping, na região do Iguatemi, construído em terreno da empresa municipal pública DESAL, em lugar ter sido criado em seu lugar um pequeno, mas necessário Ibirapuera, um parque público com equipamentos culturais como em São Paulo.
Há anos atrás, a prefeitura permitiu concretar-se a área do antigo Aeroclube, na orla atlântica, para a construção de um shopping à moda Little Italy americana, dando a hegemonia sobre 20 hectares públicos a uma chamada Plaza Show.  Isso em desrespeito a um ano de negociação com membros da sociedade civil, para tornar a área um parque verde, com construções pontuais, para serviços e equipamentos de lazer e esporte, sem cercas ou muros, sem isolamento do bairro da Boca do Rio e sem fechamento para o mar com uma vertente de cascalho, escondida sob gramado, montada a titulo de “duna”, onde a natureza construira antes apenas um macio cordão arenoso. Hoje, fracassado o empreendimento, fala-se no ajuste das funções da área com a criação de mais um sempre festejado shopping ou remodelação do atual, nessa frenética paixão dos governos pela mercadoria, a custo do que for, seja qualquer que seja seu resultado. Como dizem, é preciso “vender a Bahia”, ... a qualquer preço!
Quantas vidas estão esmagadas sob a ferragem e o concreto dessas casas de negócio, catedrais do consumo, se contarmos os meninos e as meninas que hoje aí poderiam estar brincando, os adolescentes que ai descobririam o esporte e a cultura e aprenderiam o diálogo democrático, os adultos que aí cultivariam sua cidadania?
Futuros prefeitos de Salvador visitem o Dique do Tororó para aprender a amar esta cidade, se possível, pelo menos folheem revistas amantes da beleza e da vida, naveguem na Internet para verem cidades-gente, onde muitos políticos brasileiros já fizeram turismo, mas não aprenderam o que vale aprender.

Em favor do Espaço Público
Se as pessoas tivessem consciência da importância que tem o espaço público na sobrevivência física e sobretudo na saúde psicológica e dignidade moral do cidadão, não poderiam tolerar as avenidas inteiramente indiferentes às ruas laterais, passando por miseráveis áreas da pobreza, como não poderiam omitir-se quanto à necessidade de vias transitáveis em lugar de íngremes ladeiras e escadas drenantes nesses bairros, formados sobre charcos, sobre a orla da baía e sobre encostas acidentadas, nem deixar de cobrar espaços públicos e ligações inadiáveis, além da proibição do tráfego de veículos particulares pelas áreas centrais, estacionamentos periféricos e várias outras medidas que Salvador necessita com urgência.
Não é possível calar ante a extravagância dos viadutos que não servem a coisa nenhuma, nem admitir uma cidade que obriga seus moradores a andar em passarelas elevadas, no futuro, também em longos trechos elevados de um prometido “metrô”, quando o cidadão deveria ter o direito a transitar ao nível do chão. Tudo isso sem falar nos passeios de 60 cm e mesmo de 30 cm, permitidos com nivelamento completamente heterogêneo, atendendo às saídas de veículos privados, à custa de desníveis de 15cm ou mais, nas portas dos seus proprietários. Aqui se deixam avançar construções sem recuo, ou mesmo sobre o passeio, num acinte a qualquer requisito urbanístico mínimo.
É preciso querer modelar, para melhor, áreas urbanas e micro-regionais, sejam regiões metropolitanas ou constelações de pequenas cidades no interior. A posição aqui assumida é que a questão urbana é menos uma questão de recursos financeiros do que de legislação, tributação, responsabilidade, competência e planejamento territorial - particularmente dos sistemas de circulação e áreas públicas. E muita vigilância pública! 


O "Metrô" de Salvador
 


              Metrô: A Promessa

                                                                  Desvio Insólito

*Este texto reúne extratos sobre o problema viário contidos em vários textos da autora sobre a questão urbana, embora com revisões para este artigo, não se tratando de uma colagem mecânica. 
 
**A autora é socióloga, professora da Universidade Federal da Bahia - UFBA. Começou estudando relações agrárias e passou progressivamente para planejamento e estudos urbanos e regionais. Simultaneamente tem se interessado pelo tema das relações inter-étnicas e da cultura brasileira, sobretudo do código da bahianidade. Ensinou em várias unidades da UFBA- Administração, Filosofia e Ciências Humanas, Educação, Arquitetura e Urbanismo, Engenharia - área de Engenharia Ambiental Urbana. Participou da Assessoria do Gabinete do Prefeito, na Prefeitura de Salvador, do Gabinete da Presidência do DESEMBANCO, hoje, DESENBAHIA, e foi presidente do Centro de Planejamento Municipal da Prefeitura do Salvador, cujas funções correspondiam então às da Secretaria de Planejamento.

 

 
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