E assim os dois poetas, MB e MA, um em 1925, outro em 1945, poetizaram suas cidades recorrendo a infância e a saudade. MB foi mais além e criou a sua utopia, deliciosa, ou sua ucronia, não sei, mas sim um lugar desejado, um reino fantasiado de desejos: E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada. 10 (Bandeira, Libertinagem, 1925) Decorreu que na viagem turística de aprendizado sobre o Brasil, em 1927, Mário de Andrade no seu retorno para São Paulo, de passa e volta para São Paulo, sua Paulicéia Desvairada (1922), encontrou os “qualificativos” para Salvador da Bahia, como se pode ler em seu livro, pós-vilegiatura, depois de conhecer os ares coados e finos do nordeste no seu portal de entrada baiano. No seu retorno, a bordo do Baependi (outro Ita), em 10 de agosto, MA vai relatar: “Vida de bordo esperando a Bahia que só aparece pela tarde.” Tarsila do Amaral e Oswald aguardavam o poeta “de surpresa”. Agora, MA terá companheiros para passear “às gargalhadas” e entrar na culinária baiana, em “jantar mais pesado do mundo” (vatapá, moqueca de peixe e efó). Este último, um acepipe afrobaiano, MA qualifica de “prato masoquista”, que deu-lhe uma sensação de estar “sendo comido por dentro”, o qual provoca-lhe um prazer — antropofágico? — que “é terrível, mas gostosissímo”. Em 6/12/1928, 10 horas, Mário de Andrade outra vez a bordo, agora no Manaus, tem publicações sobre nossa cidade ao escrever: “Água salgada que vai pra Bahia... Água salgada que vai pra Bahia... A frase vai se repetindo em mim, lenta, feito um acalanto de africana...” 11. No dia seguinte (S. Salvador, 7/12), o poeta já louva Salvadolores que “(...) tem um pedaço no centro que as coisas se amontoam num estardalhaço de janelas, andares, telhados, parece mentira... não é mentira não, é estardalhaço.” 12 Talvez mais solto, feliz e sem “cansaço”, MA resolve desdobrar com a Bahia, encantando-se: “Ruas que tombam, que trepam, casas apinhadas e com tanto enfeite que parecem estar cheias de gente nas janelas, o barulho nem é tamanho assim porém da impressão de enorme, um enorme grito.” E MA em fotoescritura sobre a cidade — pena que não as tenha feito também na Kodak (existem?) — acentua sobre o casario: “A sensação de simultaneidade é feroz, lembra cinema alemão.” E tome-lhe impressões do poeta observador: “S. Salvador me atordoa vivida assim a pé num isolamento de inadaptação que dá vontade de chorar, é uma gostosura.” Lamento que tenha sido por pouco tempo, mais uma vez, pois, no dia 8/12, MA volta ao navio com destino a Maceió, onde vai encontrar-se com Jorge de Lima muito rapidamente. Ao largar a Bahia, com os olhos cheios de paisagem, verdadeira e urbana, MA será sentencioso, não só qualificativo: “Passear a pé em S. Salvador é fazer parte dum quitute magnificante e ser devorado por um gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica, até.” 13 Que assim fosse perceptivelmente, no passado, eu acredito, mesmo ainda na década de 50, pois hoje é diferente, velho sábio Mário, senão escutes: Salvadolores, Salvadolores onde estás, onde tu escondes, em que ampulhetas e fotos pulsas, guardada, Salvadolores, musadevoradora? Ah! Os poetas Gregório de Mattos e Castro Alves! Que falta fazem hoje... no país da mentira. Ao encerrar este artiquete, quase um chamado para a leitura de poetas, anuncio que estou preparando algo para publicar que leva o título provisório de Poetas e Cidades ou, quem sabe, Poetas Soterrados. E só os brasileiros! Vejam, então, que para planejar uma cidade, e transformá-la em baixa, alta e altíssima, como fizeram e fazem com Salvadolores, é preciso, além de ficar debruçado em plantas, mapas, leis, fotos, pranchas, computadores, entender a alma das cidades e suas gentes, é urgente ler os seus poetas e admirar os seus fotógrafos e pintores 14. Há muito espaço fora do miolo das cidades, pois elas são de permanência, como o velho pão de trigo, farinha de mandioca e as musas. Enquanto isso, o carnaval rola e rola todo ano. Se planejam a urbs sem conhecê-la humana e poeticamente, só atendendo as regras do mercado e da propaganda, o Dr. Freud tem uma análise das culpas, pretéritas, presentes e futuras. Ágora neles! _________________________________ ¹ Professor do Departamento de História e Diretor do Centro de Estudos Baianos da UFBA.
² FILHO, Godofredo Rebelo de Figueredo. Irmã Poesia, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1987, 366p.
³ Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização, introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo, Edusp, 2000, p. 332.
4 Op. cit., 2000, p. 333-335. Sobre esta passagem de MB há uma história ou fofoca literária muito divertida: como Godofredo Filho ciceroneou o poeta “consagrado”, um jovem escritor baiano, Eugênio Gomes, teria ficado enciumado e escreveu e publicou um livrinho, com um poema, em tiragem limitada: Manuel Bandeira – poeta xexéu. Anos depois, Eugênio Gomes vivia catando a preciosidade para destruí-la e expurgá-la da sua obra.
5 ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, 1976, 381p.
6 Op. cit., 1976, p. 55.
7 Em 10/01/1912, 10 horas da manhã, J. J. Seabra, então Ministro da Justiça, no mesmo ano governador da Bahia, autorizou o bombardeio de Salvador. Ele negou, é claro, como hoje negam tudo. O poeta Jorge de Lima (1893-1953), alagoano, em seu poema Bahia de Todos os Santos vai versejar: “(...) És tão cheia de altos e baixos, Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimentas-de-cheiro. / Lamento o mau gosto dos teus turistas / que te conhecem de oitiva / e não vão além da Rua Chile asfaltada, de tuas avenidas / que o Seabra alargou. / Tu como toda mulher, tens os lugares mais sombrios mais gostosos: / Baixa do Sapateiro! / Beco do Guindaste dos Padres! / Barroquinha! / Tabuão! (...)”. LIMA, Jorge de. Obra completa. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1958, p. 232-233. Foi nesse “asfaltamento” (não foi asfalto, mas paralelepípedo) da cidade que entraram os bondes e os carros e, em 1933, com o governador Juracy Magalhães, então interventor Federal, a Sé foi derrubada. Quem quiser saber mais coisas sobre demolições de imóveis históricos, de 1912 a 1937, é só catar: PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé. Bahia, Edições Macunaíma, 1999, 255p.
8 BANDEIRA, Manuel. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1958, p. 198.
9 ANDRADE, Mário. Poesias completas. Edição crítica de Diléia Zanotto Manfio, Belo Horizonte, Villa Rica, p. 381.
10 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 222.
11 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 212.
12 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 213.
13 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 214.
14 Remeto os urbanistas para os fotógrafos do século XIX e os pintores, de mais próximo, claro, para Diógenes Rebouças e Godofredo Filho (Salvador da Bahia de Todos os Santos no século XIX, Bahia, Odebrecht, 1979, 125p.), com suas preciosas pinturas documentais e notícias e notas do poeta. |