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Salvadolores e Poetas

 Fernando da Rocha Peres¹

 

 

 

Dois poetas, de grande versejar, estiveram em Salvadolores, na Bahia, no ano de 1927. O primeiro, um pernambucano, pai dos modernistas, chamado Manuel Bandeira (1886-1968), por aqui andejou ciceroneado por nosso querido Godofredo Filho (1904-1992)², então com 23 anos, e o segundo, Mário de Andrade (1893-1945), paulistano, líder da Semana de Arte Moderna (1922).

Do MB, em correspondência à MA, posso pinçar um alumbrado comentário sobre Salvadores, ainda habitável, que transcrevo: “Bahia, 18 de Janeiro [de 1927]. Mário estou apaixonadíssimo pela Bahia! É uma terra estupenda a CIDADE BRASILEIRA. Centenas centenas centenas de baitas sobradões de 4 andares e sotéia. Se eu pudesse levava um pra mim e outro pra você. Solares de forte e sóbria linha senhorial em portas de pedra lavrada e brasonadas, batentes de madeira de lei como almofadões onde moram pretinhas meretrizes e a gente pobre mais pobre deste mundo! [...] O Largo do Pelourinho é a vista urbana que um brasileiro pode mostrar a um francês sem ter nenhuma dor de corno pela perspectiva dos Campos Eliseos ou da Avenida da Ópera. Quanta casa velha bonita! Há três dias que ando com um rapaz encantador, Godofredo Filho, fazendo a corte a todas as casas velhas da Bahia. Esse Godofredo Filho tem 23 anos e é um poetão [...] Ah! Mário você não pode demorar mais a sua viagem ao Norte. Você precisa urgentemente ver a Bahia.”³

E mais dois cartões postais MB os enviou para MA, no mesmo janeiro, 22/1927; um do Plano Inclinado e outro do prédio da Alfândega, com as seguintes mensagens: 1º) “Não é quadro modernista é a Bahia velha tão perto de nós. / Abraço do Manu. [PS] – Parto hoje para Recife.” 2º) “Veja que estupendo trapiche. É a Alfândega. Edifício colonial. As janelas são de pedra de lioz / Saudades do / Manu”4. E Mário de Andrade recebeu a carta e estes recados postais da Bahia em sua residência, na rua Lopes Chaves, nº 108, São Paulo, hoje aberta para visitação pública. 

Acontece que o autor de Macunaíma (1928) estava planejando uma viagem ao nordeste e

norte do Brasil, a primeira, que de fato ocorreu, com D. Olívia Penteado, dama da aristocracia endinheirada, e outros de São Paulo, em um Ita, do Loide Brasileiro, a bordo do Pedro I; ”O Turista Aprendiz / (Viagens pelo Amazonas até o / Peru, pelo Madeira até a Bolívia / por Marajó até dizer chega) / 1927”,5 no chão da costa brasileira e do qual resultou sua mirada inicial da nossa cultura popular, no seu veio etnográfico de pesquisador incansável e valorizador das coisas nacionais. Três meses depois da correspondência de MB, o poeta paulista chegava a Salvadolores: “Cidade do Salvador. Arre que maravilha, estou cansado. Mas o diabo é que não adianta falar ‘maravilha’, ‘manhã admirável’, ‘invenção arquitetônica adorável’, ‘moça linda’. Não adianta, não descreve. Esses qualificativos só existem porque o homem é um indivíduo fundamentalmente invejoso: a gente fala que uma coisa é ‘admirável’ e ele não só acredita mas ainda aumenta na imaginação o que a gente sentiu. Mas se eu pudesse descrever sem juntar qualificativos... Bem não seria eu”.6
        
Observa-se que MA só dedicou, no seu roteiro de ida viagem, este breve comentário sobre a Bahia, a capital, pois em 15 de maio já estava em Recife. Logo, visitou Salvadolores muito pouco e sem cicerone (?). Uma pena! Aliás, MA não foi tão expansivo ou qualificativo como MB sobre a cidade e perdeu-se em uma divagação sobre adjetivações. Leve-se em consideração que Mário diz: “Arre que maravilha, estou cansado.” Creio que o cansaço justifica só a “maravilha”. Eu, como congregado mariano, não percebo o que ocorreu com MA e a Bahia, na sua aportagem de início.
           
Porém os dois poetas entendiam as suas cidades, Recife e São Paulo. Uma a província e a outra o progresso (sic), o neocolonialismo interno em marcha até os dias atuais e, tanto é assim, que ambos (MB e MA) não perceberam que Salvadolores passava por uma reforma proto-urbana de demolidores do passado e urbanistas de araque, iniciada em 1912 com J. J. Seabra, um político de antanho que até chegou a bombardear Salvador.7 
          
Tanto eles entendiam, os poetas, e amavam suas cidades que ambos escreveram poemas sobre elas, cada um ao seu jeitão:

Manuel Bandeira– Evocação do Recife
Rio, 1925, no livro Libertinagem

Recife
Não a Veneza americana
Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais
Não o Recife dos Mascates
Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois
– Recife das revoluções libertárias
Mas o Recife sem história nem literatura
Recife sem mais nada
Recife da minha infância 8
* * *

Mário de Andrade – Lira Paulistana, 1945

Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade 9

 

E assim os dois poetas, MB e MA, um em 1925, outro em 1945, poetizaram suas cidades recorrendo a infância e a saudade. MB foi mais além e criou a sua utopia, deliciosa, ou sua ucronia, não sei, mas sim um lugar desejado, um reino fantasiado de desejos:

E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada. 10
(Bandeira, Libertinagem, 1925)

        
Decorreu que na viagem turística de aprendizado sobre o Brasil, em 1927, Mário de Andrade no seu retorno para São Paulo, de passa e volta para São Paulo, sua Paulicéia Desvairada (1922), encontrou os “qualificativos” para Salvador da Bahia, como se pode ler em seu livro, pós-vilegiatura, depois de conhecer os ares coados e finos do nordeste no seu portal de entrada baiano.
           
No seu retorno, a bordo do Baependi (outro Ita), em 10 de agosto, MA vai relatar: “Vida de bordo esperando a Bahia que só aparece pela tarde.” Tarsila do Amaral e Oswald aguardavam o poeta “de surpresa”. Agora, MA terá companheiros para passear “às gargalhadas” e entrar na culinária baiana, em “jantar mais pesado do mundo” (vatapá, moqueca de peixe e efó). Este último, um acepipe afrobaiano, MA qualifica de “prato masoquista”, que deu-lhe uma sensação de estar “sendo comido por dentro”, o qual provoca-lhe um prazer — antropofágico? — que “é terrível, mas gostosissímo”.
           
Em 6/12/1928, 10 horas, Mário de Andrade outra vez a bordo, agora no Manaus, tem publicações sobre nossa cidade ao escrever: “Água salgada que vai pra Bahia... Água salgada que vai pra Bahia... A frase vai se repetindo em mim, lenta, feito um acalanto de africana...” 11.
           
No dia seguinte (S. Salvador, 7/12), o poeta já louva Salvadolores que “(...) tem um pedaço no centro que as coisas se amontoam num estardalhaço de janelas, andares, telhados, parece mentira... não é mentira não, é estardalhaço.” 12
           
Talvez mais solto, feliz e sem “cansaço”, MA resolve desdobrar com a Bahia, encantando-se: “Ruas que tombam, que trepam, casas apinhadas e com tanto enfeite que parecem estar cheias de gente nas janelas, o barulho nem é tamanho assim porém da impressão de enorme, um enorme grito.”
           
E MA em fotoescritura sobre a cidade — pena que não as tenha feito também na Kodak (existem?) — acentua sobre o casario: “A sensação de simultaneidade é feroz, lembra cinema alemão.” E tome-lhe impressões do poeta observador: “S. Salvador me atordoa vivida assim a pé num isolamento de inadaptação que dá vontade de chorar, é uma gostosura.”
           
Lamento que tenha sido por pouco tempo, mais uma vez, pois, no dia 8/12, MA volta ao navio com destino a Maceió, onde vai encontrar-se com Jorge de Lima muito rapidamente. Ao largar a Bahia, com os olhos cheios de paisagem, verdadeira e urbana, MA será sentencioso, não só qualificativo: “Passear a pé em S. Salvador é fazer parte dum quitute magnificante e ser devorado por um gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica, até.” 13
           
Que assim fosse perceptivelmente, no passado, eu acredito, mesmo ainda na década de 50, pois hoje é diferente, velho sábio Mário, senão escutes: Salvadolores, Salvadolores onde estás, onde tu escondes, em que ampulhetas e fotos pulsas, guardada, Salvadolores, musadevoradora? Ah! Os poetas Gregório de Mattos e Castro Alves! Que falta fazem hoje... no país da mentira.
          
Ao encerrar este artiquete, quase um chamado para a leitura de poetas, anuncio que estou preparando algo para publicar que leva o título provisório de Poetas e Cidades ou, quem sabe, Poetas Soterrados. E só os brasileiros!
           
Vejam, então, que para planejar uma cidade, e transformá-la em baixa, alta e altíssima, como fizeram e fazem com Salvadolores, é preciso, além de ficar debruçado em plantas, mapas, leis, fotos, pranchas, computadores, entender a alma das cidades e suas gentes, é urgente ler os seus poetas e admirar os seus fotógrafos e pintores 14. Há muito espaço fora do miolo das cidades, pois elas são de permanência, como o velho pão de trigo, farinha de mandioca e as musas. Enquanto isso, o carnaval rola e rola todo ano. Se planejam a urbs sem conhecê-la humana e poeticamente, só atendendo as regras do mercado e da propaganda, o Dr. Freud tem uma análise das culpas, pretéritas, presentes e futuras. Ágora neles!

 

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¹ Professor do Departamento de História e Diretor do Centro de Estudos Baianos da UFBA.

² FILHO, Godofredo Rebelo de Figueredo. Irmã Poesia, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 1987, 366p.

³ Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Organização, introdução e notas de Marcos Antonio de Moraes. São Paulo, Edusp, 2000, p. 332.

4 Op. cit., 2000, p. 333-335. Sobre esta passagem de MB há uma história ou fofoca literária muito divertida: como Godofredo Filho ciceroneou o poeta “consagrado”, um jovem escritor baiano, Eugênio Gomes, teria ficado enciumado e escreveu e publicou um livrinho, com um poema, em tiragem limitada: Manuel Bandeira – poeta xexéu. Anos depois, Eugênio Gomes vivia catando a preciosidade para destruí-la e expurgá-la da sua obra.

5 ANDRADE, Mário. O turista aprendiz. Estabelecimento do texto, introdução e notas de Telê Porto Ancona Lopez. São Paulo, Duas Cidades, 1976, 381p.

6 Op. cit., 1976, p. 55.

7 Em 10/01/1912, 10 horas da manhã, J. J. Seabra, então Ministro da Justiça, no mesmo ano governador da Bahia, autorizou o bombardeio de Salvador. Ele negou, é claro, como hoje negam tudo. O poeta Jorge de Lima (1893-1953), alagoano, em seu poema Bahia de Todos os Santos vai versejar: “(...) És tão cheia de altos e baixos, Bahia, gostosa dos dendês, jilós, acaçás e pimentas-de-cheiro. / Lamento o mau gosto dos teus turistas / que te conhecem de oitiva / e não vão além da Rua Chile asfaltada, de tuas avenidas / que o Seabra alargou. / Tu como toda mulher, tens os lugares mais sombrios mais gostosos: / Baixa do Sapateiro! / Beco do Guindaste dos Padres! / Barroquinha! / Tabuão! (...)”. LIMA, Jorge de. Obra completa. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1958, p. 232-233. Foi nesse “asfaltamento” (não foi asfalto, mas paralelepípedo) da cidade que entraram os bondes e os carros e, em 1933, com o governador Juracy Magalhães, então interventor Federal, a Sé foi derrubada. Quem quiser saber mais coisas sobre demolições de imóveis históricos, de 1912 a 1937, é só catar: PERES, Fernando da Rocha. Memória da Sé. Bahia, Edições Macunaíma, 1999, 255p.

8 BANDEIRA, Manuel. Poesia e Prosa. Rio de Janeiro, Editora José Aguilar, 1958, p. 198.

9 ANDRADE, Mário. Poesias completas. Edição crítica de Diléia Zanotto Manfio, Belo Horizonte, Villa Rica, p. 381.

10 BANDEIRA, op. cit., 1958, p. 222.

11 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 212.

12 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 213.

13 ANDRADE, op. cit., 1976, p. 214.

14 Remeto os urbanistas para os fotógrafos do século XIX e os pintores, de mais próximo, claro, para Diógenes Rebouças e Godofredo Filho (Salvador da Bahia de Todos os Santos no século XIX, Bahia, Odebrecht, 1979, 125p.), com suas preciosas pinturas documentais e notícias e notas do poeta.

 
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