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Gey Espinheira¹ 


 

O sociólogo Gey Espinheira analisa as complexas relações sociais em Salvador, cidade marcada, por um lado, pela desigualdade e pobreza e, por outro, pela espetacularização e inserção subordinada aos atuais processos de globalização capitalista. O objeto dessa entrevista é, pois, a cidade do São Salvador, distante dos cartões postais, vista e cotidianamente vivida por quem anda e trafega pelas suas ruas e avenidas. 

VeraCidade - Como a teoria sociológica, hoje, auxilia no entendimento de realidades como a de Salvador? O conceito marxista de classe social ainda é atual?

Gey Espinheira - Há pessoas que, em tom profético, anunciam o final dos tempos, da história, da luta de classes. Enquanto teoria e conceito das classes sociais, a concepção marxista continua de pé, o que mudou foi a consciência de classe, o sentimento de pertença, porque a maioria dos que vendem a força de trabalho não é mais operária industrial e não se sente operária. Hoje, incluímos o conceito de periferia, não como uma referência geográfica, mas sociológica, a referir-se a distâncias sociais, à pobreza urbana, àqueles seres que Bauman classifica como "redundantes", como "restos", como "lixo", como "refugo", que são os não empregados, os desempregados, todos os que não embarcaram e todos os que foram desembarcados.

VeraCidade - Salvador é uma cidade muito desigual. Como se explica as nossas diferenças econômicas, sócio-espaciais e culturais?

Gey Espinheira - Escrevi, dentre muitos artigos sobre o tema, um que se denomina "Salvador: a cidade das desigualdades²" e um capítulo do livro Reflexões sobre a cidade: panoramas urbanos, organizado por Milton Esteves e Urpi Montoya Uriarte: "Imagem da cidade feia e desumana: Salvador vista no Subúrbio Ferroviário" (Edufba, 2003). 

Temos razões históricas, isto é, remotas, para explicar a nossa pobreza e nossas desigualdades mas, também, temos razões recentes, política e tecnicamente produzidas para acentuar as desigualdades, a exemplo das políticas desenvolvimentistas que apregoavam a produção de empregos com a industrialização, como fizeram recentemente com o advento da FORD, que deveria prover 150 mil empregos. Ao lado desta convocação irresponsável, demagógica, em que participam políticos e técnicos - sobretudo economistas engenheirizados - consertadores do mundo, que têm receita para tudo e que culminam com a sugestão de resolver os problemas sociais de Salvador transferindo a Capital para a Chapada Diamantina, centro geográfico da Bahia. Teoria de equilíbrio, de equilibristas técnicos que não percebem que somos o resultado de um capitalismo retardatário, com capitalistas retardados, como diria o saudoso e genial economista Raul Paz.

Dentre os efeitos tecnocráticos, planejadores estaduais e municipais criaram a pérola da "área de vocação para habitação popular", ou seja, uma naturalização das áreas urbanas ruins, baratas, que deveriam receber a concentração popular, tal como o Subúrbio Ferroviário, como analisamos em um outro artigo publicado em VeraCidade  nº 03, setembro de 1992 sobre Bate-Coração, uma das muitas invasões que se seguiram amontoando gente em uma parte da cidade que, aos técnicos, tinha "vocação para habitação popular", criando, desta forma, um gueto urbano com mais de quinhentas mil pessoas e que continua a ser o lugar do "viver melhor", miséria urbana, favela projetada por arquitetos e engenheiros a propor o que há de pior, de mais enganador para as populações de baixa renda, a exemplo do desastrado conjunto Araçás, que desabou em parte, e do famigerado Nova Primavera, a envelhecer rapidamente, antes mesmo de maturado, como outras tantas coisas nesta cidade, com este mal que Lévi-Straus observou em Tristes Trópicos: envelhecer antes de amadurecer, como o nosso metrô, uma ruína precoce.

Desemprego, não-emprego e tornar-se "redundante", isto é, não desejado, intruso, excessivo, são as causas dessa monumental desigualdade que ainda se expressa nas distâncias sociais tão marcadamente percebida na expressão: "gente bonita", ou seja, lugar de gente bonita x gente feia. 

VeraCidade - Como o capital imobiliário, particularmente a especulação imobiliária, interfere nos processos de estruturação e conformação do uso e ocupação do solo urbano em Salvador?

Gey Espinheira - Salvador tem sido a cidade dos incorporadores imobiliários, serve a seus interesses e são eles que ditam a política urbana. Não é a cidade de "todos" e o todos não são santos, mas, ao contrário, são pobres diabos, como são, de fato, os absolutamente pobres. Não há mercado imobiliário para baixa renda. Resta a invasão e o conceito de invasão agrega ao de favela a condição da ilegalidade jurídica de acesso à terra urbana. Sim, são os proprietários de imóveis, os incorporadores, os especuladores imobiliários que fazem Salvador, assim como são os bloqueiros - empresários de blocos - que fazem o carnaval de Salvador ser o que é, a usurpação do espaço público e da fantasia, para ser uma mercadoria cada vez mais insípida e ao mesmo tempo cruel.

VeraCidade - O que caracteriza o processo de urbanização e periferização em Salvador e sua região?

Gey Espinheira - A segregação espacial ostensivamente programada pelo planejamento, pela política habitacional levada adiante pelos empreiteiros, essa gente que suga os recursos públicos de forma vampiresca e, claro, com a cumplicidade de técnicos e políticos governamentais. Uma das estratégias é a escolha de terrenos acidentados para dar superfaturamento nas obras de terraplenagem, terras distantes, as Fazendas Coutos da vida, as velhas e novas Constituintes, como foram, também, as Cajazeiras, cidades-conjunto distanciadas, já programadas como periferias, como não-cidade, não-bairro e o "lar" transformado em "unidade habitacional". Há uma política perversa de distanciamento social-espacial na cidade do Salvador e em sua Região Metropolitana, uma associação de cumplicidade, uma verdadeira formação de quadrilha entre empresários-empreiteiras e técnicos e políticos governamentais, há uma "empreitaragem" que domina Salvador e faz a cidade das desigualdades. 

VeraCidade - O que qualifica a condição de pobre em Salvador? Quais as conseqüências dessa condição social em termos das relações de sociabilidade?

Gey Espinheira - Ser pobre em Salvador, a terra da felicidade, é mais que duplamente cruel. 40% da população anda a pé porque não tem o dinheiro do transporte urbano; uma parcela da população do "Miolo" não tem acesso à praia e as praias se tornaram privativas de comerciantes de barracas a constranger o freqüentador não-consumidor. Ser pobre em Salvador é ser invisível ou visto como marginal. Salvador é uma cidade de forte segregação espacial em que até as festas de largo se extinguem, melhor, são extintas por uma política de "desfavelização das festas de Largo", tão ao gosto de marqueteiros e prefeitos tecnocratas, gente de alma pequena a querer espanholizar Salvador. O resultado é a separação social, a exclusão, os bonfim-light, os lugares de "gente bonita" em que os "brawns" não entram, o desconhecer a cidade, o viver os shoppings centers.

VeraCidade - O que pode ser dito em relação ao nosso "gigante invisível", ou seja, sobre a informalidade em Salvador no atual contexto de globalização?

Gey Espinheira - Salvador é uma cidade pobre, com uma pobreza de dar inveja a qualquer um. A penúltima cidade dentre as capitais do país, só é melhor em renda per capita do que Teresina, capital do Piauí. Mas, vejamos, a Bahia é o 6º Estado mais rico do país, mas está em 22º lugar em Desenvolvimento Social (IDH). Estamos no "caminho certo", sorria, você está na Bahia, mesmo que você não tenha dentes ou os tenha careados. O  que temos é a recorrência ao informal, ao precário, ao provisório, ao imediato e, assim mesmo, com o "rapa" no encalço e com o elogio da reciclagem: que sejamos todos catadores de latinhas, de plásticos e de papelão, que devemos dar o exemplo nacional com a limpeza que a multidão de pobres faz antes mesmo da chegada da Limpurb.

VeraCidade - A violência é um modo social de ser. Como se explica e quais as razões para tanta violência nos tempos atuais?

Gey Espinheira - Vejo a violência como fracasso da política, não apenas da política institucional mas, também, a da sociabilidade. Uma sociedade da superabundância e, ao mesmo tempo, da exclusão, não tem mediação e isso leva à violência como recurso para inserir-se socialmente. Nos tempos atuais, o dinheiro é absolutamente indispensável e aqui em Salvador tem uma sentença que tudo explica: "se você tem alguma coisa, você vale alguma coisa; se você não tem nada, você não vale nada". Cada um de nós se recusa a ser "nada", a violência é uma alternativa para aqueles que não podem formalmente obter renda, mesmo que "informalmente", conceito que cai em desuso quando compreendemos que tudo, absolutamente tudo, é formalizado por taxas, impostos, licenças etc.
Os índices de violência são extremamente altos porque empobrecemos e excluímos muita gente, enquanto do outro lado, no "andar de cima", uma gente rica e consumidora tem a seu dispor todos os prazeres da vida. Há um preço a pagar e há muita gente a cobrar por isso.

VeraCidade - Vivemos hoje uma certa banalização da violência nas grandes cidades. Como é viver/conviver com a violência em Salvador? O que caracteriza a distribuição sócio-espacial da violência em Salvador?

Gey Espinheira - Viver em Salvador hoje é viver perigosamente. Mas, é diferente de bairro a bairro. Por exemplo, há uma proporção "civilizada", isto é, aceitável, de 9 homicídios por grupo de 100 mil nos bairros "nobres" (significativo, não?) e esta proporção ultrapassa a 100 por 100 mil em alguns bairros populares. Assim, se se é branco(a) e rico(a), a probabilidade de morrer assassinado(a) é relativamente pequena, mas quando se é negro(a), sobretudo do gênero masculino e pobre, a probabilidade é muito alta.

VeraCidade - Como analisar a condição/inserção de Salvador e sua região no atual processo de globalização capitalista?

Gey Espinheira - Salvador é uma cidade cosmopolita, há muito integrada internacionalmente, mas, ao mesmo tempo, periférica em termos de potência econômica. Quando se é assim, acaba-se por abastecer os centros fortes, com função subsidiária. É assim esta cidade recreio para o país, em que sua maior festa, o carnaval, lhe dá um bruto prejuízo (aos cofres públicos). Mas, proliferam os shoppings, há uma gente rica por aí e a vida anda e os pobres, invisíveis, devem ficar onde estão, na periferia, longe, afastados, distantes... afinal, essa gente não existe...


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¹Sociólogo e Professor da Universidade Federal da Bahia
²Cadernos do CEAS, nº 184, novembro/dezembro 1999, [63-78].
 

 
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